Manágua, Nicarágua, 14/6/2013 – Cinco séculos de espera podem chegar ao fim a partir deste ano, quando o governo da Nicarágua entregar a uma empresa de capital chinês a concessão para construir um canal interoceânico que, entre protestos locais e ceticismo internacional, avança com rapidez. Ontem, a unicameral Assembleia Nacional legislativa aprovou em regime de urgência uma polêmica lei que prepara o caminho para que no próximo ano comece a construção da nova ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico, e que seja entregue em concessão por até cem anos a um consórcio chinês.
A empresa HK Nicaragua Canal Development Investment Co. Limited (HKND Group) foi escolhida pelo governo do presidente Daniel Ortega para executar as obras da gigantesca via comercial, ao custo estimado de mais de US$ 40 bilhões. Diversos setores nicaraguenses pedem maior transparência no processo de concessão, que torna realidade um projeto presente na história deste país desde a chegada dos conquistadores espanhóis.
Uma das maiores críticas é que o Estado concederia os direitos totais da obra por 50 anos, prorrogáveis por outros 50, a uma empresa criada em outubro de 2012 em Hong Kong e registrada nesse mesmo ano no paraíso fiscal das ilhas Gran Caimã. Na constituição da companhia aparece como sócio principal Wang Jing, investidor da República Popular da China que em 2012 assinou um contrato de investimento em telecomunicações com a Nicarágua que está, pelo menos, quatro meses atrasado.
O prazo para construção do canal é estimado em dez anos e seu início está previsto para maio de 2014. Os estudos de viabilidade não estão prontos, mas versões do governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) já os encomendaram a uma empresa de Londres. O primeiro passo legal foi dado em julho de 2012, quando, por iniciativa de Ortega, o parlamento aprovou a Lei de Construção do Canal Interoceânico, por uma empresa de caráter público-privada. Nela, o Estado terá 51% das ações e os 49% restantes estarão nas mãos de investidores, que poderão ser países, organismos internacionais, pessoas físicas ou jurídicas.
A HKND projeta construir uma via com pelo menos 190 quilômetros em terra e 80 quilômetros através do lago Cocibolca, com uma largura não inferior a 150 metros para navios de grande calado. O projeto conta com o firme apoio do governo de Ortega, que no dia 5 enviou, em caráter de urgência, à Assembleia o projeto aprovado ontem: a Lei Especial para o Desenvolvimento de Infraestrutura e Transporte Nicaraguense referente ao Canal, Zonas de Livre Comércio e Infraestrutura Associados.
A nova lei muda a letra da anterior, determina outro rumo para a obra e garante de maneira exclusiva os investimentos aos sócios chineses. Também estabelece que a Nicarágua renuncia a qualquer reclamação e soberania sobre a concessão de até cem anos. O texto foi aprovado de forma geral por 61 votos do FSLN, 25 contra e uma abstenção, após três horas de tenso debate, e a bancada de oposição se retirou na imediata votação em separado de cada um de seus 25 artigos, como protesto pela análise insuficiente e por modificações no texto.
Com a nova lei se projeta dois portos de águas profundas, um aeroporto internacional, uma zona de livre comércio, uma ferrovia, zonas francas e um oleoduto. Estimativas oficiais indicam que o canal terá capacidade para receber o tráfico de 450 a 500 milhões de toneladas métricas anuais e embarcações de até 250 mil toneladas, com mais de 400 metros de comprimento, 59 de largura e 22 de calado. Esses números não oficiais, em termos de capacidade, superam os do Canal do Panamá, que atualmente pode receber navios de 64 mil toneladas e que, quando terminarem suas obras de expansão, passará a receber embarcações de até 140 mil toneladas.
A nova lei dá aos investidores asiáticos 100% das ações e estabelece que a passagem para a Nicarágua será gradual, após os primeiros dez anos de entrada em operação do canal. Este país receberá US$ 10 milhões anuais até a entrega total das ações em um século. Tal apoio institucional do governo conta com aprovação, embora com reservas, das cúpulas empresariais e câmaras de investidores nicaraguenses. Mas a oposição de direita e os dissidentes sandinistas o rejeitam terminantemente, bem como ambientalistas e cientistas sociais.
Eduardo Montealegre, coordenador da bancada legislativa opositora, chamou Ortega e seus funcionários de “vende pátria”, pelas amplas concessões dadas aos investidores estrangeiros que, segundo disse à IPS, ferem os interesses atuais e futuros da Nicarágua. O catedrático e advogado constitucionalista Gabriel Álvarez denunciou que a concessão do projeto a empresários chineses viola artigos sobre soberania nacional e sobre os direitos de posse. Além disso, afirmou à IPS, deixa o país sem defesa diante de um julgamento local ou internacional frente aos concessionários.
O biólogo e especialista em águas Salvador Montenegro, diretor do Centro para a Pesquisa em Recursos Aquáticos da Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua, disse à IPS que toda obra sobre o lago Cocibolca coloca em risco a biodiversidade e a sociedade nicaraguense e da América Central. Este lago, de 8.624 quilômetros de extensão do sudoeste da Nicarágua, constitui a principal reserva de água doce da região.
O secretário de políticas públicas do governo, Paul Oquist, ignorou as reclamações de ambientalistas e políticos e antecipou que, com o início da construção do canal, o produto interno bruto (PIB) crescerá 10,8% em 2014, e 15% em 2015, enquanto atualmente seu crescimento está entre 4% e 5%. O governo espera que a obra aumente para mais que o dobro o PIB nicaraguense num prazo curto, situando-se em 2018 em US$ 24,7 bilhões, contra seu nível atual de US$ 10 bilhões. Sem a construção do canal, a previsão é que o PIB cresceria para US$ 14,9 bilhões em 2018.
O projeto do canal foi apresentado de maneira informal por Ortega ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, durante a cúpula de presidentes do Sistema de Integração Centro-Americana, realizada no dia 4 de maio, na Costa Rica. A iniciativa não causou reações oficiais, a favor ou contra, entre os vizinhos centro-americanos. Apenas Ricardo Martinelli, presidente do Panamá, país com o qual o novo canal competiria, felicitou a intenção de realizar a obra e ofereceu assessoria técnica à Nicarágua. Envolverde/IPS