A diferença entre fato social e acontecimento jornalístico (ou “notícia”) pode ser muito relevante na observação da imprensa, em especial quando se busca a correta apreensão sensível do que está por trás das manchetes. É certo que a notícia – a mercadoria principal da atividade jornalística nos últimos dois séculos – vem sendo bastante modificada, em suas definições profissionais clássicas, pela diversificação dos interesses e dos públicos característicos da internet. Ainda assim, o horizonte cognitivo do jornalismo – melhor, do bom jornalismo – é o conhecimento do fato.
No fato, os acontecimentos estão simultaneamente relacionados, como se fossem um “estado de coisas”, ou seja, uma conexão entre pessoas ou entre objetos. Assim, o que acontece no jornal (o relato de um caso ou “notícia”) é tornado possível pela existência desses “estados”, que se evidenciam à lógica do observador. Nesta linha de raciocínio, são os fatos que tornam as proposições verdadeiras ou falsas.
A informação jornalística parte de objetos primariamente tidos como factuais, para obter, por intermédio do caso-acontecimento-notícia, alguma clareza sobre o fato socio-histórico. Não raro, notícias editorialmente diferentes pertencem ao mesmo campo cognitivo do fato social.
É o que se dá com duas notícias separadas no noticiário da semana passada. Pela primeira se fica sabendo que o Ministério da Educação (MEC) distribuiu milhares de cartilhas às escolas com a recomendação de tolerância para os desvios de linguagem do tipo “os livro” ou “nós pega o peixe”. Pela segunda, toma-se conhecimento de que o mesmo Ministério estaria preparando outra cartilha para ensinar às crianças que é natural a relação homoafetiva.
Práticas heterogêneas
Por trás das duas notícias, aparentemente diversas, se encontra um mesmo fato histórico relativo à transformação de costumes e relações sociais. Para vários teóricos da educação – um deles é Istvan Mészaros, bastante conhecido pelos pedagogos brasileiros – a mudança dos dispositivos formais da educação deveria ser isomórfica com a transformação social. Diz Mészáros: “O que precisa ser confrontado e alterado fundamentalmente é todo o sistema de internalização, com todas as suas dimensões, visíveis e ocultas”.
Em outras palavras, os jovens devem incorporar imediatamente todas as verdades consensuais do momento social. Por isso, seria imperativo “substituir as formas onipresentes e profundamente enraizadas da internalização mistificadora”.
Por outro lado, o francês Étienne Balibar acrescenta um aspecto (geralmente pouco considerado nos debates educacionais) às reflexões de Mészaros. Refletindo sobre a importância contemporânea da escolarização e da família, ele vai além do argumento centrado no lugar funcional que elas assumem na reprodução da força de trabalho, sugerindo que a importância das duas instituições reside no fato de que “elas subordinam essa reprodução à constituição de uma etnicidade fictícia, isto é, à articulação de uma comunidade linguística e de uma comunidade de raça implícita nas políticas da população”.
Para se resumir essas duas manifestações em termos de fato social, pode-se dizer que há todo um horizonte de mudanças institucionais atinentes às supostas “verdades” – relativas às formas linguísticas e às relações de gênero e de “raça” – inculcadas nas crianças pela pedagogia tradicional. Em sua diversidade, as citadas notícias jornalísticas reencontram-se, portanto, na unidade do fato socio-histórico das mudanças.
Mas essa explicação não torna automaticamente pacífica a interpretação das notícias como decorrências “naturais” do fato. É verdade que há diferenças de classe social ao nível da utilização do idioma e que a normatização vernácula não deve servir de pretexto para a estigmatização da diversidade social, como ocorria no passado com o império beletrista dos bachareis sobre as massas pouco alfabetizadas. Entretanto, é preciso determinar com cuidado a partir de que faixa etária é viável socializar os jovens com esse conhecimento da heterogeneidade das práticas de linguagem.
Refletir e discutir
O mesmo cuidado vale para as relações de gênero. É preciso não confundir a fase de socialização primária com a da individualização no processo educacional. A primeira lida com uma faixa etária ainda muito pouco madura (apesar dos alegados avanços da “revolução da informação”) para a assimilação de toda a complexidade da formação sexual. É de formação mesmo que se trata, e isto deveria em princípio advir de uma mediação progressiva realizada pela família em conexão com um novo tipo de professor. A informação pura e simples da novidade incide menos conflituosamente sobre a fase da individualização, numa mentalidade já socializada.
Toda essa avalanche informativa sobre a infância corresponde ao que Jean Baudrillard, importante pensador da pós-modernidade, chamou de “obscenidade” no sentido radical da palavra, isto é, aquilo que se encena diante do olhar do outro, sem as devidas mediações.
Sob o ângulo de uma pedagogia responsável, é obscena toda essa exposição televisiva de lixo cultural reciclado ou de informações sobre o “novo” como se este, em si mesmo, representasse a modernidade. Não se trata de proibir, porque a censura tem implicações históricas inaceitáveis, e sim de ter clareza quanto ao caráter social daquilo que, sob as capas do fácil entretenimento, se comunica. A escola obriga-se a essa clareza.
Por isso, é no mínimo estranho que o Ministério da Educação, em meio à crise da escolarização, da formação docente (que é pífia) e da progressão do analfabetismo funcional (aquele em que o aluno lê, mas não compreende), se atire com toda essa pressa, midiaticamente, sobre novidades institucionais. O MEC é hoje muito mais uma plataforma político-eleitoral do que think-tank de políticas educacionais. Quando não esgrime tabelas ou estatísticas, o burocrata-pedagogo padece de cegueira conceitual e se mostra mais perdido do que cego em tiroteio, senão como um surfista desequilibrado na onda do que a mídia entroniza como novo. Pedagogicamente, vive a realidade do Jeca-Tatu, mas embalado ao som do cantador Xangai, que brinca: “Nós é jeca, mas é joia…”
É o caso de se parar para refletir e discutir um pouco mais. Desse jeito, “nós pega o peixe”, mas “nós paga o pato”.
* Publicado originalmente no site Observatório da Imprensa.