[media-credit name=”João Carlos Fontoura” align=”alignright” width=”300″][/media-credit]Eram 10 da manhã de 24 de junho de 1952, véspera de São João. O então senador Assis Chateaubriand e o escritor Guimarães Rosa, vestidos como boiadeiros nordestinos, deixaram a galope a praça principal da pequena Caldas de Cipó, na Bahia, à frente de centenas de cavaleiros. Iam até o campo de pouso da cidade recepcionar o DC-3 presidencial que trazia a bordo Getúlio Vargas e o governador do Estado, Régis Pacheco. O avião aterrissou tranquilamente na pista de terra batida cercada de cajueiros e mandacarus. Sob sol escaldante, o gaúcho Vargas seria, pouco depois, condecorado com a Ordem do Vaqueiro e paramentado, ele mesmo, com o gibão e o chapéu de couro de boiadeiro sertanejo.
Guimarães Rosa acabara de chegar da célebre viagem a cavalo por Minas Gerais, levando 198 cabeças de gado, que lhe inspiraria Grande Sertão: Veredas. E assim descreveu a cena: “Em Caldas do Cipó, pude ver reunidos – espetáculo inédito, nos anais sertanejos e creio mesmo que em qualquer parte – cerca de 600 vaqueiros autênticos dos ‘encourados’: chapéu, guarda-peito, jaleco, gibão, calças, polainas, tudo de couro, couro de veado-mateiro, cor de suçuarana. Fui com Assis Chateaubriand, que é o rei dos entusiastas, e tive de vestir também o uniforme de couro e montar a cavalo (num esplêndido cavalo paraibano), formando na ‘guarda vaqueira’ que foi ao campo de aviação receber o presidente Getúlio Vargas. A mim coube ‘comandar’ os vaqueiros de Soure (Nova Soure, cidade vizinha) e de Cipó.”
Aos improváveis visitantes àquelas paragens se juntariam ainda o vice-presidente Café Filho, ministros, governadores e outras autoridades convidadas a prestigiar a inauguração de “um dos mais belos e luxuosos” hoteis de todo o país, o Grande Hotel Caldas de Cipó, com 80 quartos mobiliados “com o mais absoluto bom gosto, conforto e luxo, nada ficando a dever aos melhores do gênero de toda a América do Sul”. Quem conta é o jornalista Odorico Tavares (1912-1980), em reportagem de sete páginas, publicada na extinta revista O Cruzeiro, dias depois do acontecimento histórico. A hoje esquecida Cipó possuía então “as mais famosas águas termais do Brasil”.
Dona de um quiosque de sorvete ao lado das “cascatas” artificiais na atual Praça das Águas da cidade, Maria José Silva Reis, a Menininha, de 69 anos, lembra como se fosse agora. “Eu tinha dez anos, era magrinha, parecia um ‘belisco’. Todas nós, estudantes, de camisa de algodão branca de botão e sainha plissada azul-marinho, estávamos em fila, esperando o presidente, que chegou andando no meio do povo, ao lado dos cavaleiros e das charretes. Me arrepio só de falar, olha.”
À noite, com as ruas iluminadas pelas fogueiras de São João, e as luzes dos fogos de artifício refletindo nas águas do Rio Itapicuru, a festança continuou, com um jantar servido por negras baianas de torço e saia brancos, que serviram vatapá e outras iguarias – nada a ver com a região, onde se comem carne de bode e aipim. Um baile caipira nos salões do Grande Hotel durou até a manhã do dia seguinte.
Festas acabadas, a glória de Cipó duraria pouco. A estância termal tinha vivido o seu auge nos anos 1930 e 1940, quando o cassino da cidade atraía os usineiros ricos de Alagoas e de Pernambuco. Famílias inteiras vinham de todos os cantos do país para banhar-se nas águas sulfurosas radioativas, com propriedades terapêuticas, exploradas durante 30 anos pelo médico Genésio Salles, especializado na França. O tratamento durava 21 dias e, reza a lenda, até leprosos foram curados ali. Ricas em cálcio, magnésio, lítio e outras substâncias, as águas de Cipó têm fama de serem eficazes contra problemas de pele, reumatismo, arteriosclerose, doenças do estômago e “fraqueza genital”. “A água só não é boa para quem tem doença do coração e para mulher grávida, que perde o neném”, adverte a dona de casa Ilma Góes. Os efeitos curativos devem compensar o paladar terrível da bebida, tomada aos litros por quem acredita nela.
Sem o jogo, proibido no Brasil por Eurico Gaspar Dutra em 1946, o Grande Hotel não iria adiante: Getúlio, Chatô, Guimarães Rosa e companhia abrilhantaram, na verdade, a inauguração de um dos maiores elefantes brancos da história nacional. Quem percorre os 242 quilômetros de estrada da capital Salvador até Cipó avista, de longe, pouco depois da placa que anuncia a chegada à cidade, o prédio gigante, destacado entre as construções baixas do município de pouco mais de 15 mil habitantes. “O hotel funcionou a pleno vapor, mesmo, só durante um ano”, conta o professor Evandro de Araújo Goes, o “sábio” do lugar, que pesquisou a história de Cipó desde a descoberta de suas águas, no Século 18, quando se chamava Vila do Cipó e, mais tarde, Mãe d’Água do Cipó. Em 1935, transformada em estância hidromineral, passou a ser Caldas do Cipó, hoje apenas Cipó.
Em 1928, o médico Salles, um aventureiro que fez a primeira viagem de automóvel pelo Sertão de que se tem notícia, havia inaugurado o Radium Hotel, atualmente em ruínas, com árvores crescendo pelas paredes. Bem ao lado do Radium e seu cassino, foi erguido o Grande Hotel que, volta e meia, seria restaurado, mas que ficou a maior parte de sua existência vazio, despertando o saudosismo da população. O clube balneário, com seus banheiros e piscinas termais, foi inteiramente alagado pelas cheias do Rio Itapicuru, em 1969.
O abandono dos prédios dá ao lugar um ar de cidade fantasma, em que o tempo se esqueceu de passar. Até a década de 1980, quando foi reinaugurado com estardalhaço, mas sem nenhum sucesso, pelo governador Antonio Carlos Magalhães, o Grande Hotel ainda ostentava um piano de cauda e o mobiliário original. Atualmente, só os andares térreos são ocupados, por órgãos da Prefeitura. Os demais cinco andares foram lacrados.
“Ao longo dos anos, maus cipoenses foram roubando lustres, mobília. A suíte presidencial, onde dormiu Getúlio Vargas, foi inteiramente depredada”, conta o professor Goes. Não sobrou nada da suíte, nem mesmo os vasos sanitários. Em 2009, um funcionário da Prefeitura, ao tentar atear fogo a uma colmeia de abelhas nos andares superiores, incendiou parte do telhado do hotel. Os “bons” cipoenses choravam copiosamente diante do edifício em chamas, a quem se apegaram nessas seis décadas como a uma joia de família. Foi preciso vir um carro de bombeiros da vizinha Paulo Afonso para que fossem domados o fogo e a tristeza da população, eternamente crédula de que o velho hotel voltará um dia aos tempos áureos.
Dos dias de fausto, ficou nos habitantes da cidade um curioso sentimento de que tudo aconteceu ontem, como se a água termal tivesse um efeito mágico sobre a memória. Nos jardins do velho Radium, com as janelas inteiramente lacradas, o vendedor de refrigerantes explica que as rodas de jogo no cassino, proibidas 40 anos antes, “aconteceram até os anos 1980”. Na Praça, a senhora que vende sorvetes jura que “pouco tempo atrás” a cidade vivia lotada de turistas, a quem os locais chamavam “banhistas”. Nos folhetos turísticos, a Cipó dos edifícios históricos abandonados é descrita como “uma das cidades mais belas do interior da Bahia”.
O velho aeroporto onde pousaram Vargas e sua comitiva foi substituído por outro, inaugurado também pelo finado ACM, na década de 1990, sempre com a esperança (ou a promessa) de ressuscitar o turismo em Cipó. Nada feito. “Às vezes eu penso que a construção desse hotel foi ruim para nós”, especula o vigilante do Aeroporto Bento Macedo, queixando-se da solidão do campo de pouso, onde mora, à espera de aeronaves que nunca descem. Como o turismo ficou na lembrança, de cada três habitantes da cidade, dois vivem do comércio de artesanato – redes e cortinas –, que vendem inclusive em países vizinhos. Uma via de Cipó é conhecida como “rua dos argentinos”, porque seus moradores construíram as casas depois de sucessivas idas e vindas à terra de Cristina Kirchner. “Eles falam um portunhol retado”, conta Bento.
“O Grande Hotel não foi um bom presente para Cipó”, concorda Noure Cruz, professor de História e ex-secretário de Cultura do Município. “O governo, dono do hotel, não investiu em atrair turistas como fazia Genésio Salles, que possuía até agência no Rio de Janeiro para trazer gente para cá.” Segundo Cruz, a cidade não prosperou porque não foi construída para os próprios habitantes, e sim para os que vinham de fora. “Os moradores ficavam à margem e os turistas ficavam no centro. A população não se sentia bem no meio daquela elite.” Na época do médico Salles, os banheiros termais eram separados por “doenças de pele”, “doenças internas” e por classe social: somente um dos dez chalés de madeira podia ser utilizado pelos “pobres”. Hoje, ao menos, as cascatas são de uso público.
A tragicomédia da cidade está às vésperas de ter, quem diria, mais um capítulo. No ano passado, por meio do PAC das Cidades Históricas, o Ministério da Cultura assinou um convênio com a Prefeitura que prevê a liberação de R$ 35 milhões para restauração do Grande Hotel, do clube balneário, do Radium Hotel e do prédio da Prefeitura, que formam um dos maiores conjuntos urbanísticos em estilo art déco do Brasil. A ideia é transformar parte do monumental edifício em um hotel-escola, administrado pelo Senac. A outra metade do prédio seria utilizada pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) como campus no semiárido. Para o Radium Hotel, os planos são transformá-lo em centro de convenções.
“Vamos tentar algo novo”, promete o atual secretário de Cultura e Turismo, Dernival Santana. A cem quilômetros dali, a estância hidromineral de Caldas do Jorro tem ocupação turística constante, mas Santana torce o nariz para “o turismo farofeiro” de lá. “Queremos o turismo de saúde de volta a Cipó”, sonha. “Com a popularização dos antibióticos, as pessoas abandonaram as águas medicinais, não foi só em Cipó, não. Mas os tempos mudaram e hoje tem um renascimento das terapias alternativas”, aposta o prefeito Jailton Macedo. “Nosso projeto tem tudo para dar certo, porque não basta revitalizar o prédio, tem de movimentar a cidade. Isso vamos conseguir com a vinda dos universitários”, diz. Às voltas com o Tribunal de Contas, Macedo precisa provar que, ao contrário dos antecessores, não dará outro destino às verbas para restauração e que não deixará o Grande Hotel de Cipó continuar à espera da glória.
* De Cipó, Bahia.
** Cynara Menezes é jornalista. Atuou no extinto Jornal da Bahia, em Salvador, onde morava. Em 1989, de Brasília, atuava para diversos órgãos da imprensa. Morou dois anos na Espanha e outros dez em São Paulo, quando colaborou para os jornais Folha de S. Paulo e Estado de S.Paulo, revistas Veja e VIP. Está de volta a Brasília há dois anos e meio, de onde escreve para a Carta Capital.
*** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.