Novas perguntas para a Política
Por que a Política é tão difícil? Por que os instrumentos convencionais de análise política não funcionam para explicar adequadamente vários fenômenos que vêm ocorrendo, sejam manifestações espontâneas, seja a própria dificuldade de os governos darem respostas estruturadas para os fatos? Impotentes e perplexos é como nos sentimos diante de coisas tão complicadas.
Por que a Política é tão difícil? Por que os instrumentos convencionais de análise política não funcionam para explicar adequadamente vários fenômenos que vêm ocorrendo, sejam manifestações espontâneas, seja a própria dificuldade de os governos darem respostas estruturadas para os fatos?
Impotentes e perplexos é como nos sentimos diante de coisas tão complicadas. Assim, culpamos a Política, que “não serve”, os políticos – “todos irresponsáveis, corruptos ou incompetentes” – e a “apática” população. “Participação não adianta, nada muda mesmo”, desacreditamos.
Esse quadro não diminui a efervescência que as populações aglomeradas em grandes manchas urbanas estão demonstrando. Vivemos um século XXI caracterizado pela civilização em cidades. Nunca tivemos uma concentração tão grande dos problemas humanos de múltiplos relacionamentos, recursos escassos, perda de conexão com a Natureza e uma vulnerabilidade socioambiental imensa. Além, é claro, da proliferação das sociopatias decorrentes da perversa combinação entre urbanização acelerada e desigualdade.
A Política não funciona, as cidades são entrópicas, o ambiente está em desequilíbrio. Marina Silva diz com frequência que “a realidade responde na língua em que é perguntada”. Não seria, então, a hora de mudarmos as perguntas?
Há uma diferença entre o que é simples, complicado e complexo. O simples é aquilo que permite a compreensão imediata, está no nível do bom senso. O complicado é o que exige uma interpretação das estruturas subjacentes e o entendimento da justaposição das partes. O complexo é aquilo que não se revela numa primeira percepção, cujas estruturas operam sem aparecer à primeira vista e cujas partes só se definem a partir do todo, de forma dinâmica e não definitiva nem permanente. A sociedade é complexa. Entendê-la sob essa perspectiva não nos daria a capacidade de elaborar melhor as políticas públicas?
Caso concreto: a Prefeitura de São Paulo constata que há um colapso no trânsito, provocado pela predominância do transporte individual, e decide aumentar o espaço para o transporte coletivo. Simples.
No entanto, essa oferta seria por si só uma garantia de que pessoas iriam deixar seus carros em casa e usar o transporte coletivo? Parece que não. Há outros fatores que influenciam essa decisão: média de permanência nos pontos de ônibus, conforto dos veículos, extensão do trajeto, conveniência, velocidade e acesso.
Na presunção de que para se aumentar o uso do transporte público bastaria abrir corredores de ônibus pela cidade, nasce o projeto 17/2014, de autoria do Executivo, propondo o alargamento de 66 vias para a criação de corredores. Quem poderia ir contra essa lógica?
Ora, as consequências que não se mostram à primeira vista incluem, por exemplo, a desapropriação de centenas de casas – o que joga o valor das propriedades para perto de zero -, o remanejamento de famílias, o fechamento de estabelecimentos comerciais e, assim, também a perda de empregos. Os prejuízos de quem é afetado não entram na conta do projeto, porque aceita-se que uma minoria deve ser sacrificada por um bem maior. Parece lógico, não?
Eis que uma dada minoria, o movimento pela Av. Nossa Senhora do Sabará , resolve se organizar e fazer um inventário das suas perdas, repensando a necessidade de se abrir um corredor naquela via e como se reduzir os danos. Assim, oferece uma alternativa sustentada por uma mobilização e também por uma solução técnica.
Nenhuma área da cidade havia se mobilizado pra fazer uma proposta como essa, até então. Ao fazer isso, esse pequeno movimento da Sabará modificou totalmente a percepção de como esse projeto deveria ser concebido e implementado. Vários outros movimentos começaram a fazer o mesmo, como uma revoada de pássaros em que os da frente mudam a direção de todo o grupo. Surge o movimento pela av. Alvarenga e outros nas zonas Leste e Norte.
Por que um projeto tão bem feito por técnicos, que responde a um problema sobre o qual todos concordam, pode gerar tanta perturbação? Corremos o risco de ficarmos perplexos quando vemos a dissociação do projeto dos corredores de um sistema urbano maior onde moram pessoas, existem mercados, relações, interesses diversos e disputas de espaço. Esse exemplo do movimento Sabará representa uma reação a visão da política tradicional porque essa entende apenas que um problema tem causas que devem ser resolvidas com a melhor solução técnica e ponto. Uma formulação que se revela complicada.
Dado o potencial de mudança sistêmica do projeto que o movimento evidenciou, o governo preferiu tirar da lei o corredor da av. Nossa Senhora do Sabará. Ele preferiu interpretar o movimento como uma reivindicação e a atendeu para evitar obstáculos maiores. Ora, participação não se limita apenas à reivindicação. Participação é a inclusão no processo maior de solução do problema de propostas que emanam da inteligência coletiva, em articulação com a política publica. Em outras palavras, as demandas e propostas do coletivo auxiliam e modificam a política publica original, melhorando-a. Este processo simbiótico e dialético na sociedade urbanizada, conectada e complexa, altera também o papel do político. Ele deixa apenas de representar os anseios da população e passa a ser um agente facilitador que dialoga e organiza o coletivo e suas demandas, criando condições para que o coletivo aja. Ele ajuda a construir um caminho que não é apenas de negociação, mas fruto emergente do diálogo.
Está aí o limite da política tradicional, que emula a tradição cartesiana na solução de problemas, faz leituras de ação e reação, coalizões e conflitos, situação e oposição, partidos políticos, Executivo, Legislativo, Judiciário.Poder, enfim, na melhor tradição do Liberalismo.
Aqui, estamos falando de uma forma de fazer Política que incorpora, numa análise sistêmica, quais são os pontos de acupuntura cuja ação pode modificar o todo. E aí a lógica tradicional é modificada, com o surgimento de novas perspectivas. Executivo e Legislativo podem se ver forçados a trabalhar juntos em soluções suprapartidárias. Partidos rivais podem ser convocados a trabalhar em conjunto para que um movimento consiga êxito,ou para reduzir danos. Leituras tradicionais que veem conflitos de interesse entre classes de renda diferentes podem ser surpreendidas por movimentos que unem diversas classes sociais em lutas comuns. Classes sociais diferentes podem ter interesses comuns e temporariamente se aliarem na ação política.
A abordagem complexa explode os conceitos tradicionais. Se a Política tem fracassado na solução de tantas questões, é porque esses elementos não têm sido incorporados: nem na concepção, na implantação dos processos, nas consultas populares, nem nas articulações entre entes públicos.
Há muito que se caminhar nessa direção, mas certamente a visão tradicional da política e da democracia representativa não será aquela que resolverá as complexas demandas do nosso tempo.
No caso dos corredores de ônibus, foi mais fácil para o governo, no curto prazo, excluir o problema do que repensar a solução sistêmica. É neste momento que escrevo e posso afirmar que a exclusão do problema não é a solução para o projeto: aquela parte será integrante da solução, porque já desencadeou pleitos similares no restante da cidade que obrigarão o Executivo a repensar o projeto como um todo.
A Política não pode ser desqualificada. Ainda que não estejamos à altura de compreender novos fenômenos de uma sociedade urbana em rede, precisamos nos capacitar e incorporar à ação política a dimensão sistêmica à qual essas sociedades complexas nos desafiam.
* Ricardo Young, 56, empresário, é vereador em São Paulo pelo PPS. Foi presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.




