Conhecemos bem a voz e as imagens estridentes da propaganda. Basta ligar a televisão, o rádio, abrir qualquer revista ou jornal, e lá está ela: novecentos e noventa e nove reais e noventa e nove centavos! Tudo em doze meses sem juros! Ou à vista com desconto de quarenta por cento. A avalanche de apelos dessa natureza que diariamente invadem a casa e a intimidade da família representa a força e a eficácia do marketing. Às centenas ou aos milhares, são despejados sobre nossas cabeças luzes e sons, truques e artifícios que nos atordoam. Atordoam e impelem muitas vezes a um consumo frenético, desenfreado e até desnecessário.
A marca da publicidade – novecentos e noventa e nove – é notória e por todos conhecida. Freando o preço no limiar de uma nova dezena (39,99), de uma nova centena (399,99) ou de um novo milhar (2999,99), ela traduz a impressão falsa, menos consciente e mais inconsciente, de que estamos economizando dez, cem ou mil reais. Ameniza desse modo a ânsia de comprar e a culpa de um consumo ilimitado. Compre, compre sem medo de ser feliz! E as vitrines, profusamente iluminadas, exercem um fascínio sem igual. Convite às compras, para uns; sedução que faz brilhar o olhar e alimenta uma possibilidade, para outros.
Primeiro faz desfilar diante de nossos olhos as novidades da última moda, os artefatos da tecnologia de ponta, os objetos mais cobiçados e mais vendidos, além de tantas outras bijuterias e bugigangas. Em não poucos casos, parece até nos ajudar na escolha, mostrando o que cada um deve vestir, comer, ter, consumir, usar. Caso contrário, alertam os anúncios, “você está na contramão”! E insistem em alto e bom som que, sem eles, “você não será feliz”! Pior ainda quando tudo isso é feito não de forma declarada, mas implícita. É o que chamamos de propaganda subliminar ou sub-reptícia. Na medida em que não temos plena consciência da agressão externa, tampouco teremos condições de nos defender.
Depois, o volume e a quantidade de novos produtos, além de atordoar, acarretam confusão. O que fazer? Mas aí o socorro chega prontamente: siga nossos conselhos, imite as celebridades, veja o que acaba de ser lançado e “sinta o prazer de viver!”. E este prazer se confunde facilmente com a marca do carro ou do combustível; com o rótulo do uísque e da cerveja; com a operadora da telefonia e da internet; com a etiqueta da roupa; com a loja onde adquirimos os móveis e eletrodomésticos; com a marca do sabonete ou shampoo, e assim por diante. Mais grave ainda: quanto mais veloz o ritmo entre a compra, o uso e o descarte, “mais você estará será feliz!” Quanto mais rápido você se adapta à moda, “mais você será um cidadão diferente, antenado com o que existe de melhor”, insiste a publicidade. Vejam como fazem Fulano, Sicrano ou Beltrano – a celebridade da novela, do mundo do esporte ou da grife e da moda. A sofisticação da publicidade dita as regras e o comportamento.
Com não pouca frequência, entramos nessa maratona. O próprio desejo de ser diferente acaba por nos uniformizar a todos. Para superar o vizinho, adquirimos algo mais vistoso e brilhante, coisa que, em seguida, será por sua vez superado por ele. E assim entramos numa disputa sem fim. Pretextando nos trazer o conforto e a felicidade, a propaganda cria desejos artificiais, acende o pavio da cobiça, acirra a concorrência e nos coloca a todos numa pista de corrida virtual. Entupimos nossas gavetas e nossas casas com bens absolutamente desnecessários ou com prazo de validade mínimo. Alguns jamais serão usados, outros se tornam descartáveis antes mesmo de desembalados. A própria posse de determinado objeto o banaliza, tira-lhe o mistério. E o desejo, sempre insatisfeito, salta para outro produto mais fino, mais atual, com maior fulgor. Fecha-se o círculo vicioso do consumo compulsivo.
De produto em produto, vamos acumulando uma série de bens supérfluos. Mas a matemática aqui não funciona. Quanto mais acumulamos coisas que aparentemente nos trazem a felicidade, mais fundo e amargo parece ser o vazio de nossa existência. Ao banalizar as mercadorias que vamos adquirindo, banalizamos a nós mesmos. E o coração humano, finito mas projetado para o infinito, revela-se sempre insatisfeito, irrequieto, infeliz. Bem diz Guimarães Rosa que “coração de gente é terra selvagem”. De nada adianta tentar aplacar e domesticar seus desejos. Estes, a cada degrau que subimos, parecem brotar de entranhas mais profundas e desconhecidas. Deste modo, torna-se vã a busca desenfreada da felicidade!
O império do marketing pesa sobre a existência. A roda gigante do produzir-vender-consumir-descartar nos alcança e nos atropela. Uma grande maioria, às vezes sem mesmo o saber, se deixa levar pelas leis férreas do mercado. Mercado que, a exemplo de um gigantesco polvo, tem em seu DNA o crescimento a qualquer custo. Daí a dupla face da globalização, que leva o polvo a estender seus tentáculos a todo planeta: cresce extensivamente, buscando novos territórios, novos povos e novos consumidores; e cresce intensivamente, recriando necessidades artificiais naqueles que já estão integrados ao sistema. Sempre existe um produto novo, inédito, que preciso adquirir. Não posso ficar para trás!
O aperfeiçoamento da tecnologia, particularmente com a revolução da informática, apresenta como única solução a ideia de crescimento constante. Este é visto como uma espécie de panaceia para todos os males. A economia capitalista está em crise? Qual a solução? Mais crescimento! Pouco importa que este esteja viciado por profundas assimetrias e injustiças sociais. Não se pergunta, como fez a crítica lúcida do Papa Paulo VI na Populorum Progressio, se ele traz ou não um “desenvolvimento integral de todo o homem e do homem todo”. Crescer ao invés de distribuir equitativamente, eis a solução mágica! Hoje torna-se claro que semelhante forma de crescimento traz embutido o vírus da desigualdade socioeconômica, aprofundando cada vez mais o abismo entre ricos e pobres. Numa palavra, o remédio tende a matar o doente!
Nem precisa lembrar as implicações disso para a progressiva poluição, devastação e desertificação do meio ambiente. Essa matemática fria e calculista do mercado explora ao máximo todas as potencialidades da natureza e todo o suor do trabalho humano, além de realizar investimentos lucrativos com o patrimônio cultural da humanidade. Tudo se vende e se compra, tudo se mercantiliza, tudo pode ser objeto de acúmulo de capital, especialmente a partir do ritmo e da capacidade de produção desencadeada pela Revolução Industrial. A tal ponto que a lei férrea do mercado, tendo por motor o lucro, pouco a pouco vai invadindo todos os espaços, até mesmo o sacrário da vida, seja esta vegetal, animal ou humana. É o que se constata na manipulação das células e na engenharia genética.
A estridência do marketing é tão apelativa e permissiva que cabe a pergunta: até que ponto nos deixamos envolver nessa embriaguez do consumo, das coisas efêmeras, da febre do descartável? Efêmeras e descartáveis tornam-se igualmente as próprias relações humanas, no que Zygmunt Baquman chama de “modernidade líquida”, “amor líquido”, “tempos líquidos” e “vida líquida” – todos títulos de obras suas. “Tudo o que é sólido se desmancha no ar” alertava Marx e Engels já em meados do Século 19.
A verdade é que, por mais que estejamos conscientes diante da telinha, por mais que nos defendamos da torrente de produtos que nos oferecem e da estridência com que o fazem, resta a questão: como administramos nossas compra e nosso orçamento? Daí a importância de, frente a tantos apelos, ater-se não às expectativas, e sim às necessidades. Do ponto de vista político, as promessas focalizam muito mais as expectativas populares do que a precariedade das condições básicas de vida de grande parte da população. Focalizar as necessidades é estabelecer planejamento, programas e metas; é repensar o que se produz, como e para quem; enfim, é visar ao bem-estar da maioria. Chegamos assim à política e à democracia em seu sentido primordial, desde a antiga Grécia.
* Pe. Alfredo J. Gonçalves é assessor das Pastorais Sociais.
** Publicado originalmente no site Adital.