“A nova classe C parece estar mais independente deste enredo político-gerencial. Não está representada em nenhuma estrutura formal e nem é atendida por qualquer programa vinculado aos anéis burocráticos fordistas (ou subsistemas do fordismo lulista). Sua ideologia é o consumo e a sustentabilidade familiar. É cínica, desconfiada, conservadora nos valores, arredia às ações coletivas amplas. O conceito de direito não lhe parece muito significativo, preferindo o interesse.”
Pouco a pouco, o mapa econômico do país se altera. As capitais atraem menos fluxos migratórios (as cidades com até 500 mil habitantes são, hoje, as que mais atraem fluxos migratórios); Nordeste, Paraná e Rio Grande do Sul presenciam a volta de sua população que migrou anos atrás; muitas regiões rurais passam a concentrar investimentos externos que alteram seu perfil produtivo; o Oeste do país vai consolidando seu poder de atração para todo agronegócio.
O Nordeste parece um caso emblemático. Os nordestinos não buscam mais São Paulo, como ocorria nos anos 1980 e 1990. Em 2004, se inicia o caminho inverso, a “migração do retorno”. É o que revelam os estudos de deslocamento populacional do IBGE. Em cinco anos, a emigração de nordestinos diminuiu 22%. Os primeiros a fazer esta migração do retorno tinham, em média, 45 anos de idade, sete anos de escolaridade. Oriundos, em especial, de Pernambuco, Sergipe, Rio Grande do Norte e Paraíba. Parte foi atingida pelo desemprego em São Paulo (18% em meados da primeira década deste século, muito acima da média nacional). Um terço dos trabalhadores da construção civil e serviços domésticos de São Paulo eram nordestinos. Enfim, salário baixo, dificuldades para se empregar, baixa qualificação profissional. Mas isto não bastava para ter a certeza do retorno.
Não por outro motivo, a demanda de crédito cresce mais no Nordeste, oscilando acima de 15% na comparação com o ano anterior. De maneira geral no país (segundo o Indicador Serasa Experian), os que ganham até R$ 500 mensais são os que mais procuram crédito. Trata-se, evidentemente, do fenômeno da ascensão social e emergência da nova classe C, voraz consumidora. O Nordeste passou a ser a região mais beneficiada com investimentos do governo federal em 2011, incluindo as estatais. Os investimentos previstos representam 19% do total e atingem R$ 9,9 bilhões. Com os projetos das novas refinarias da Petrobrás na região (Premium II, no Ceará, e Premium I, no Maranhão), o volume tende a aumentar.
Segundo o informe técnico do Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Banco do Nordeste), grande parte dos investimentos está focado em infraestrutura e atendimento social (como saneamento). A maior parte dos recursos do Executivo serão canalizados para a Bahia (R$ 3 bilhões), sendo que Pernambuco receberá a maior fatia dos investimentos das estatais (R$ 11,4 bilhões). Pernambuco expandiu sua participação no total de investimentos federais de 0,1% (2006) para 10,6% (2011). Lembremos que este foi o Estado campeão em percentual de votos despejados na campanha pela reeleição de Lula.
A Petrobrás investiu na Refinaria Abreu e Lima e uma infinidade de obras de infraestrutura do PAC e projetos relacionados com a Copa do Mundo de 2014.
Este novo desenho acabou por gerar necessidade de crédito nas empresas nordestinas. Reflexo do grau de descapitalização histórico da região, o que exige recomposição do seu capital de curto prazo. De qualquer maneira, esta situação revela um importante gargalo estrutural. Mesmo com o cenário de desaceleração da economia nacional no primeiro semestre deste ano, a região Nordeste foi a que registrou menor recuo na busca por crédito de pessoa física (3,3%, ao contrário do Sudeste que recuou 4,9% e da média nacional, que apresentou recuo de 5,1%).
Contudo, a situação se inverteu em relação à pessoa jurídica: o recuo da região foi de 5,8%, superior aos 4,5% do Sudeste e 5,2% da média nacional. Assim, o baixo background financeiro resulta em que qualquer política restritiva do governo federal em relação à oferta de crédito para empresas afete diretamente e com maior eficiência a região Nordeste.
2. Bolsa Família como atração política
O Nordeste é, ainda, um caso emblemático de como a mudança do perfil econômico do país é acompanhado diretamente pela alteração do mapa político. Em outras palavras, justamente as regiões de atração da “migração de retorno” são as que mais se aproximam do lulismo. Vejamos o mapa das regiões do país com maior e menor IDH e a votação que Dilma Rousseff e José Serra receberam. André Singer já havia alertado para esta relação entre as políticas de transferência de renda e o voto lulista. Para o autor, seria um voto típico do lumpensinato, desorganizado por natureza e propício ao clientelismo, como ocorre nos fenômenos denominados de bonapartismo.
Os dados sobre os valores da nova classe C (aqueles que ascendem das classes D e E) não sugerem este fenômeno, já que ocorre uma independência política maior, certa aversão à prática política e um evidente egoísmo e pragmatismo deste eleitor. Esta que é a maior fatia do eleitorado brasileiro na atualidade e envolve mais de 53% dos brasileiros. Mas no que tange à base dos estratos de renda, principalmente aquele beneficiário das políticas de transferência de renda, o neoclientelismo parece se configurar como possibilidade, embora ainda não totalmente consolidado.
Os dados do Censo 2010 revelam que 76% dos brasileiros abaixo da linha de pobreza concentram-se no Norte e Nordeste do país. Por outro lado, os maiores beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF) residem em pequenos Municípios, com média populacional de 12,8 mil habitantes. O PBF beneficia 70% da população residente nesses Municípios. E aí, cria-se um círculo virtuoso porque se não é este programa que promove a ascensão social dos beneficiários, o incremento do comércio local impulsiona a abertura de novos postos de trabalho. Um círculo virtuoso que carrega várias mazelas, como veremos no final deste artigo. Em 2010, a TV Globo e o jornal Estado de S. Paulo contrataram pesquisa que revelou que 22% dos eleitores do Nordeste eram beneficiados pelo PBF. Nas regiões Norte e Centro Oeste, o índice caía para 8%, decrescendo na medida em que se caminhava para o Sul do país (7% no Sudeste e 5% no Sul).
Temos, então, uma situação econômica e política em transição que altera significativamente a configuração nacional. Transição que indica mudanças culturais e de hábitos sociais dos mais significativos, a saber:
1) A emergência de uma nova composição da classe C, hoje envolvendo a maioria dos brasileiros, consumidora e focada nos núcleos de intimidade social (em especial, suas famílias), possivelmente diretamente relacionada com o surto desenvolvimentista que envolve cidades médias e regiões que atraem investimentos recentes. As pesquisas recentes revelam um ideário pragmático e independente partidariamente. As escolhas são definidas a partir de garantias de sua estabilidade de consumo ou promoção social. Seus valores morais são ultraconservadores, com destaque para a defesa da unidade e segurança de sua família. Esta nova configuração impacta negativamente os laços clentelistas regionais, principalmente os vinculados às tradicionais oligarquias políticas. Contudo, este impacto não é conclusivo em virtude do pragmatismo da nova classe C, que sugere uma alta possibilidade de se forjar um acentuado cinismo político;
2) A estruturação progressiva do neoclientelismo a partir das políticas de transferência de renda e concentração orçamentária no governo federal. Para os estratos de renda mais baixos, os mecanismos de transferência de renda criam um lastro entre os beneficiários e o poder local (que administram, em parceria, estes mecanismos). Para os estratos de renda mais altos, o PAC e os financiamentos promovidos pelo BNDES (incluindo os arranjos produtivos locais) consolidam uma relação muitas vezes promíscua entre alto empresariado e estruturas governamentais de fomento ao desenvolvimento. Assim, temos a emergência de anéis burocráticos que envolvem agências de fomento, empresários, lideranças políticas locais e beneficiários das políticas de transferência de renda. O comportamento político desses segmentos sociais parece confluir para certo alinhamento com o lulismo, embora os beneficiários das políticas de transferência de renda guardem, evidentemente, uma dependência política maior;
3) Um fluxo migratório que inverte a lógica do final do século passado. Esta mudança do fluxo pode alterar hábitos políticos e sociais nos locais que recebem famílias e trabalhadores que se instalaram por anos nas capitais e cidades polo do centro-sul brasileiro.
Vale ressaltar que as lideranças políticas locais municipais são elementos centrais desta nova configuração política do país. A concentração orçamentária na União (entre 54% e 60% do total do orçamento público, oscilando nesta faixa nos últimos cinco anos) impele os prefeitos a gerentes dos convênios com ministérios e agências estatais. Os vereadores, por seu turno, procuram acessar e intermediar os benefícios advindos dos convênios entre prefeituras e agências estatais federais. O mesmo, na grande maioria dos casos, envolve grande parte dos parlamentares estaduais e federais do país, que intercedem como representação cartorial por suas bases eleitorais e seus principais apoiadores, os prefeitos.
O que procuro ressaltar é que prefeitos e parlamentares constituem uma trama que se insinua sobre os anéis burocráticos federais. O governo federal e suas agências tornam-se demiurgos do desenvolvimento e da promoção desta rede cartorial.
Temos, assim, subconjuntos especializados que conformam o “fordismo lulista”:
a) BNDES/PAC e alto empresariado;
b) PBF e outros instrumentos de transferência de renda que são mediados por políticos locais;
c) estruturas cartoriais de representação município-agências federais;
d) estruturas cartoriais que fazem a mediação entre convênios de prefeituras com governo federal e beneficiários.
Como se percebe, é justamente a nova classe C que parece estar mais independente deste enredo político-gerencial. Não está representada em nenhuma estrutura formal e nem é atendida por qualquer programa vinculado aos anéis burocráticos fordistas (ou subsistemas do fordismo lulista). Sua ideologia é o consumo e sustentabilidade familiar. É cínica, desconfiada, conservadora nos valores, arredia às ações coletivas amplas. O conceito de direito não lhe parece muito significativo, preferindo o interesse.
Talvez aqui esteja a explicação para entendermos porque vivemos mobilizações sociais extemporâneas e sem grande impacto organizacional (Parada Gay, Marcha com Jesus, Marcha das Vadias, Marcha pela Liberdade de Expressão), apresentando uma pauta fragmentada ou até mesmo esquizofrênica. As mobilizações atuais substituem os movimentos sociais dos anos 1980. Porque não há segmentos sociais organizados, motivados por um projeto de sociedade ou pela ampliação de direitos ou agenda nacional.
O Brasil Potência é fragmentado ou conformado em subsistemas de gerenciamento de políticas setoriais. Uma espécie de focalização global do Estado que conforma tentáculos e múltiplos acordos. E um poder central que, sob administração de Dilma Rousseff, parece mais e mais uma eminência parda. Não aparece nitidamente. Mas todos sabem que paira sobre nossas cabeças, sustentado por esta miríade de acordos e agências.
* Rudá Ricci é sociólogo, doutor em Ciências Sociais, professor do mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Fundação Dom Hélder Câmara, autor de Lulismo (Editora Contraponto, 2010).
** Publicado originalmente no blog do autor e retirado do site IHU On-Line.