O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que acontece nos dias 22 e 23 deste mês, apresenta o maior número de inscritos desde a sua primeira edição, em 1998, quando foi lançado pelo então ministro Paulo Renato Souza (1945-2011). São 6.221.697 interessados em realizar a prova que, originalmente, foi criada com o intuito de avaliar o desempenho dos alunos ao término da escolaridade básica. Com o passar dos anos, no entanto, o exame começou a ser aplicado em substituição ou como complemento dos vestibulares de acesso aos cursos profissionalizantes pós-médio e ao ensino superior. Atualmente, sua atuação é abrangente e, para muitos, dispersiva.
A primeira grande mudança ocorreu em 2004, quando o Ministério da Educação (MEC) instituiu o Programa Universidade para Todos (ProUni) e vinculou a concessão de bolsas em instituições privadas à nota obtida no Enem. Mais tarde, em 2009, intensificando o discurso de democratização do acesso à educação superior, o MEC instituiu o exame para o ingresso às universidades públicas brasileiras via Sistema de Seleção Unificada (Sisu). O Sisu é um método informatizado que indica os candidatos para as instituições públicas de ensino de acordo com a nota que obtiveram no Enem. No segundo semestre de 2011, foram oferecidas 26.336 vagas em 48 instituições de ensino públicas por meio do Sisu/Enem.
No que depender do ministro Fernando Haddad, o vestibular convencional está com os dias contados. De acordo com o titular da pasta da Educação, os exames tradicionais podem acabar ainda nesta década. Ele também já estuda tornar a prova obrigatória. Um exemplo que estimula esta previsão é o da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que decidiu substituir sua prova tradicional pelo Enem para o acesso em 2012.
O processo teve início em 2009, quando a instituição utilizou o exame como primeira fase do vestibular. Na época, foram selecionados quatro candidatos por vaga para a segunda fase. Por exemplo, se havia 30 vagas para o curso de Engenharia Mecânica, os candidatos com as 120 melhores notas realizavam a prova específica da UFRJ.
Em 2010, houve uma divisão de vagas: 40% destinadas ao vestibular, 40% para o Sisu e outros 20% pelo Sisu somado ao processo de ação afirmativa, que determinava que somente podiam concorrer candidatos egressos do ensino médio de escolas públicas. O Conselho Universitário da UFRJ avaliou a experiência como bem-sucedida e resolveu extinguir o vestibular próprio. Agora, o próximo processo seletivo será pelo Sisu/Enem, oferecendo um total de nove mil vagas, 30% reservadas aos alunos que fizeram ensino médio integralmente na escola pública e com renda familiar per capita inferior a um salário mínimo (R$ 545).
“Nosso foco é a democratização do acesso ao ensino superior”, afirma Marta Feijó Barroso, superintendente acadêmica da gradução da UFRJ. Segundo ela, a ação resolve um problema antigo do processo seletivo, a autoexclusão dos alunos provenientes de escolas públicas. “Em geral, esses estudantes acham que não têm chance de concorrer. Com o Enem, isso não está acontecendo. Nós estamos preenchendo, inclusive, vagas de cursos de mais baixa procura que antes não conseguíamos preencher”, explica.
No outro extremo da ponte aérea, a Universidade de São Paulo (USP), continua sem utilizar o Enem em nenhuma das etapas de seu processo seletivo. Em 2009, a instituição até cogitou aproveitar a prova como complemento em uma das fases de seu vestibular, porém, por causa de uma alteração de datas do exame nacional, a experiência foi descartada.
Naquele ano, o Enem sofreu o mais duro golpe na sua credibilidade e eficiência logística, quando a prova foi furtada de dentro da gráfica que fora contratada para imprimi-la. Os criminosos foram descobertos ao tentar vender as questões, o que provocou o adiamento do exame. Inicialmente agendado para outubro, ele foi alterado para dezembro. Na época, o gasto com a reimpressão da prova foi estimado em R$ 148 milhões, além de ter causado prejuízo aos 4,5 milhões de candidatos inscritos. Dos 4,1 milhões de inscritos, 37% desistiram de fazer a avaliação.
Por causa do problema, e alegando incompatibilidade de calendários, a USP descartou o Enem – o mesmo aconteceu com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Dois anos depois, a posição da instituição paulista permanece inalterada. A questão do cronograma é o argumento oficial para que o exame nacional continue não sendo usado no seu processo seletivo. Se a intenção de Haddad é unificar os vestibulares, muitos especialistas acreditam que o ministro enfrentará resistência.
Mil e uma utilidades
“A USP jamais terá o Enem como prova determinante. No máximo, o utilizará como complemento”, opina Mauro Aguiar, diretor-presidente do Colégio Bandeirantes e membro do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo. Aguiar ainda questiona o foco de atuação do exame que, desde 2009, também serve como certificação de conclusão do ensino médio em cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA), o antigo supletivo.
“O Enem nasceu para ser uma avaliação de competências e habilidades, o que é diferente do vestibular. A prova foi uma grande evolução na área educacional, mas ela quer fazer tudo – seleção para vestibular, avaliação das escolas, certificação para o ensino médio. Não existe exemplo internacional de exame que seja tudo isso ao mesmo tempo”, comenta Aguiar.
Essa opinião vai ao encontro do pensamento de Nilson José Machado, professor titular da Faculdade de Educação da USP (Feusp). “O Enem não surgiu para substituir o vestibular. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases) estabelece que o ensino médio é uma etapa do ensino básico, portanto um fim em si mesmo – não é um passo para o ensino superior”, argumenta.
Machado afirma que seria fundamental a discussão a respeito dos referenciais teóricos do exame, porém este assunto não está na pauta. “A preocupação agora é logística”, resume. O professor lembra que o grande mérito do Enem foi tirar do centro das atenções os indispensáveis conteúdos disciplinares, dando ênfase às competências e habilidades pessoais, que deveriam ser desenvolvidas por meio deles. Assim, ao final da educação básica, os alunos deveriam demonstrar capacidade de expressão e de compreensão, de contextualização e de imaginação. “Ultimamente, o pessoal parece confundir contexto com tamanho de texto porque as questões estão apresentando enunciados enormes, sem necessidade”, diz. Se nos primeiros anos a prova contava com 60 questões, hoje são 180. De acordo com o professor, o exame merece redefinições. “Hoje, virou uma maratona.”
Ranking e influência nos currículos
Outro ponto do Enem que há anos causa polêmica é o ranking gerado pela divulgação das médias por escola. O diretor-presidente do Colégio Bandeirantes considera um aspecto negativo julgar e comparar escolas por diferenças de 0,1% ou 0,2%. “Não que eu seja contra o ranking, até porque o Bandeirantes sempre vai bem, mas a função do Enem não é essa”, comenta Mauro Aguiar, cuja escola ficou na sexta colocação entre as melhores de São Paulo e em 49ª no comparativo nacional.
Os resultados relativos a 2010 foram divulgados pelo MEC divididos em quatro grupos, de acordo com a taxa de participação dos estudantes de cada instituição de ensino. O recurso serve para evitar distorções na hora de fazer a comparação. Em setembro, durante entrevista coletiva para tratar dos resultados do exame do ano passado, o ministro Haddad comemorou: “Conseguimos aumentar dez pontos na média. Isto significa que cumprimos 10% da meta esperada para a década”.
Aguiar entende que, mesmo com a mudança, o Enem continua não sendo uma amostragem, pois a prova é voluntária. Em 2010, o índice de abstenção entre os estudantes do Bandeirantes foi de 37%. “A saída da USP desmotivou os alunos”, esclarece o diretor. Questionado se o Enem interfere de alguma forma no currículo do colégio, ele é direto: “O que norteia nosso currículo é a Fuvest (fundação responsável pelo vestibular da USP), e acredito que seja assim em todas as escolas de São Paulo”.
O mesmo não acontece no Instituto Dom Barreto, de Teresina (PI). A escola, segunda colocada no ranking nacional, atrás apenas do Colégio São Bento, do Rio de Janeiro, já realizou algumas adaptações curriculares por conta do Enem. Depois que exames anteriores tiveram questões relacionadas ao vôlei, os coordenadores pedagógicos decidiram preparar conteúdos envolvendo práticas esportivas e conceitos de física. O Enem também trouxe para a escola um cuidado maior com as aulas de artes, como a música. É o segundo ano consecutivo que a escola conquista uma boa posição no ranking – em 2009, ficou em terceiro lugar. “Não vemos o ranking com vaidade, encaramos como um compromisso com a educação”, afirma Maria Stela Rangel, diretora do Instituto Dom Barreto.
Nilson José Machado, da Feusp, avalia que o Enem trouxe mudanças positivas também para alguns vestibulares, que passaram a apresentar questões menos técnicas e herméticas. Para o diretor Aguiar, o grande mérito do exame foi conseguir criar uma cultura de avaliação escolar.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.