Washington, Estados Unidos, 19/1/2015 – O horrendo atentado contra a o semanário satírico francês Charlie Hebdo trouxe de volta a questão da violência e do Islã. Por que, perguntam alguns, são cometidos tantos atos de terrorismo em nome do Islã e por que os jihadistas buscam a justificativa para suas ações violentas em sua religião?
Independente de Said e Cherif Kouachi, os dois irmãos que atacaram a Charlie Hebdo, no dia 7 deste mês, serem devotos ou se comportarem de maneira pouco islâmica em sua vida pessoal, o fato é que celebraram sua violência com modismos islâmicos, como “Allahu Akbar” (Deus é Grande). Outros terroristas islâmicos também recorreram a frases semelhantes no passado.
Embora numerosos líderes e teólogos muçulmanos de todo o mundo tenham denunciado o ataque à revista com sede em Paris, muitos autocratas islâmicos continuam se aproveitando do Islã com fins egoístas. Por exemplo, na mesma semana dos atentados na França, a Arábia Saudita condenou um de seus blogueiros a uma extensa pena de prisão, com enorme multa e mil açoites. Seu “crime” foi pedir a reforma do regime saudita.
Desde os atentados contra os Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, os eruditos exploram os fatores que fomentam o radicalismo islâmico e os motivos pelos quais os ativistas radicais se “apropriaram” da corrente principal do Islã.
Com base em pesquisas de opinião e análises de especialistas, a maioria dos observadores considera que dois fatores fundamentais contribuíram com a radicalização e o terrorismo: a política interna e externa dos regimes de governo e a ideologia islâmica salafista-wahabita, conservadora e intolerante, que surge principalmente na Arábia Saudita.
Nos últimos 15 anos, a análise sugere que os Estados árabes islâmicos, os eruditos muçulmanos e os países ocidentais poderiam tomar medidas específicas para neutralizar esses fatores. Mas essa análise reconhece que os resultados desejados exigem tempo, recursos, valor e, sobretudo, visão e compromisso.
No âmbito político nacional, as questões econômicas, políticas e sociais dão lugar ao discurso radical e empoderam os ativistas extremistas, tais como ditaduras, repressão, corrupção, desemprego, falta de educação, pobreza, escassez de água potável, de alimentos e eletricidade, além das más condições sanitárias.
O desemprego, de 25% a 50% na faixa etária de 15 a 29 anos na maioria dos países árabes e muçulmanos, criou uma geração de jovens pobres, alienados, raivosos e com escassa educação formal, que não se identificam com o Estado. Muitos recorrem à violência e ao terrorismo e acabam como combatentes “jihadistas” nas organizações terroristas, entre elas o Estado Islâmico (EI) e a Al Qaeda na Península Arábica.
Os regimes autocráticos de vários países árabes e islâmicos ignoraram essa situação bem com as reclamações populares durante anos, mantendo-se no poder. Os “modernos faraós” e potentados dinásticos continuam praticando suas políticas repressivas em todo Oriente Médio, alheios à dor e ao sofrimento de seu povo e à desesperança de sua juventude.
No campo da política externa, as pesquisas de opinião na região revelam que as políticas de Washington para os árabes e muçulmanos provocaram uma grave fissura entre os Estados Unidos e o mundo muçulmano.
Entre essas políticas dos Estados Unidos se incluem o que se percebe com uma guerra de Washington contra o Islã, a detenção de muçulmanos na prisão de Guantânamo, em Cuba, o inquebrantável apoio à ocupação israelense dos territórios palestinos, a violação de direitos humanos dos muçulmanos em nome da guerra contra o terrorismo e a cumplicidade com ditadores árabes islâmicos.
Os radicais islâmicos difundiram a noção, de grande repercussão entre muitos muçulmanos, de que seus governantes, ou o “inimigo próximo”, estão apoiados, financiados e armados pelos Estados Unidos e por outras potências ocidentais, o “inimigo distante”. Portanto, a “jihad”, ou guerra santa, se converte em um “dever” contra esses “inimigos”.
Embora muitos muçulmanos encontrem alguma validade no argumento radical de que a política nacional e externa frequente sustenta e justifica a jihad, atribuem grande parte da violência e do terrorismo a interpretações ideológicas extremistas e intolerantes do Islã sunita, que em sua maioria são encontradas nos ensinamentos da escola hanbali da jurisprudência seguida pelo Estado e o estabelecimento religioso sauditas.
Alguns pensadores islâmicos contemporâneos argumentam que o Islã deve passar por um processo de reforma que desloque a religião do século 12 da Arábia, onde o Corão foi revelado ao profeta Maomé, para este mundo globalizado do século 21, que transcende a Arábia e a tradicional “morada do Islã”.
Pensadores islâmicos reformistas, como o sírio Muhammad Shahrur, os iranianos Abdul Karim Soroush e Mohsen Kadivar, o suíço-egípcio Tariq Ramadan, o egípcio-norte-americano Khaled Abu El Fadl, o sudanês-norte-americano Abdullahi Ahmed An-Naim, o egípcio Nasr Hamid Abu Zayd, e os malásios Anwar Ibrahim e Farish Noor, defendem uma reinterpretação do Islã.
Em geral, esses pensadores coincidem em quatro pontos fundamentais:
- O Islã é produto de um lugar e um momento específico e responde a circunstâncias e situações específicas. Por exemplo, certos capítulos foram revelados a Maomé em Medina enquanto combatia em várias batalhas e lutava para fundar seu “Estado islâmico baseado na umma (termo do Islã que se refere à comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo).
- Se o Islã pretende ser aceito como uma religião mundial com princípios universais, os teólogos deveriam adaptá-lo ao mundo moderno, no qual milhões de muçulmanos vivem como minorias em territórios não islâmicos, como China, Índia, as Américas e a Europa. O conceito teológico da umma, que foi central para o Estado islâmico de Maomé em Medina, já não é válido em um mundo complexo, multicultural e multirreligioso.
- Se os milhões de muçulmanos que vivem fora do “coração” do Islã aspiram se converter em cidadãos produtivos em seus países de adoção, deverão ver a religião como uma ligação pessoal entre eles e seu Deus e não como um corpo comum de crenças que ditam sua interação social com os não muçulmanos ou com sua condição de minoria. Se querem viver em paz com seus concidadãos nos países ocidentais laicos, deverão respeitar os princípios da tolerância do “outro, a transigência e a coexistência pacífica com outras religiões.
- A ideologia islâmica radical e intolerante não representa a corrente majoritária da teologia muçulmana. Enquanto os terroristas, como Osama Bin Laden e Abu Bakr al-Baghdadi, citaram com frequência os capítulos bélicos do Corão de Medina, a reforma islâmica deveria se centrar nos capítulos revelados a Maomé em Meca, que defendem princípios universalistas semelhantes aos do cristianismo e do judaísmo. Esses capítulos também reconhecem Moisés e Jesus como profetas e mensageiros de Deus.
Os pensadores reformistas também coincidem em que os teólogos e eruditos muçulmanos de todo o mundo deveriam pregar aos radicais, especialmente, que o Islã não aprova o terrorismo e não deve ser invocado para justificar a violência. Embora nos últimos anos os aspirantes a terroristas invariavelmente busquem uma justificativa religiosa ou uma fatwa – o pronunciamento de um clérigo religioso para justificar suas atividades terroristas –, um Islã “reformado” proibiria a emissão dessas fatwas. Envolverde/IPS
* Emile Nakheleh é professor pesquisador da Universidade de Novo México, membro do Conselho de Relações Exteriores e autor de A Necessary Engagement: Reinventing America’s Relations whit the Muslim World (Um Compromisso Necessário: A Reinvenção Das Relações dos Estados Unidos com o Mundo Muçulmano).