Participei da Conferência de Trabalho Decente de São Paulo, a primeira do gênero que, junto com outros eventos semelhantes em todas as unidades da federação, estão preparando o terreno para a I Conferência Nacional a ser realizada em maio do ano que vem, em Brasília. Houve bons debates, envolvendo trabalhadores, governo, empresários e sociedade civil. Mas o lado bom do embate vai ficar na sombra de alguns shows de horrores que foram presenciados. Entre eles, a defesa do trabalho infantil.
Em um dos grupos de trabalho, foi apresentada proposta de buscar a aprovação de legislação para proibir que a Justiça conceda autorizações de trabalho para crianças. Contudo, os empregadores foram contrários a essa medida. Uma das representantes patronais disse, inclusive, que começara a trabalhar aos 13 e não via problema nisso. A mesma posição foi levada para a plenária da Conferência e a bancada patronal novamente votou contra a medida. As Conferências têm o objetivo de promover um debate sobre as políticas públicas de trabalho, emprego e proteção social, visando a construir uma Política Nacional de Emprego e Trabalho Decente.
De acordo com reportagem da Agência Brasil, juízes e promotores concederam, entre 2005 e 2010, 33.173 mil autorizações de trabalho para crianças e adolescentes menores de 16 anos, contrariando o que prevê a Constituição Federal. Desse total, 131 foram para crianças de 10 anos, 350 para as de 11 anos, 563 para as de 12 e 676 para as de 13 anos. Dez anos…
O que elas fazem? Além dos casos em comércio e na prestação de serviços, há também crianças envolvidas na fabricação de fertilizantes, construção civil, oficinas mecânicas, coleta de material em lixões e pavimentação de ruas. Vale ressaltar que o artigo 7º da Constituição diz que é ilegal o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de crianças e adolescentes com menos de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. No ano passado, tentaram baixar a idade legal para 14 anos no Congresso Nacional, mas a proposta foi barrada – por enquanto.
A justificativa para essas autorizações é de que essas crianças pertencem a famílias que não possuem recursos para sobreviver e precisam da força de trabalho dos pequenos. É claro que alguém sai ganhando com isso porque, no final das contas, estamos falando de trabalho barato e abundante. E com justificativa social – vocês não imaginam quantos comentários do tipo “é melhor do que estar na rua, vagabundeando” já passaram por aqui.
Seria mais racional o Estado garantir meios para sustentar essas famílias, complementando o Bolsa Família e os repasses do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) do que simplesmente autorizar o trabalho. Pois cada autorização assinada representa, para o mesmo Estado, um atestado de sua falência e inutilidade como garantia de direitos aos mais pobres.
O trabalho pode fazer parte da formação pessoal, desde que não afete o crescimento do indivíduo, respeitando a idade legal. Hoje, muitas empresas já empregam pessoas de 14 anos para fazer atividades de gente de 18 – ou, no caso da obra, 16 por 18. Usam como justificativa que treinam aprendizes, mas na verdade superexploram mão-de-obra barata. Imagine, então, com essa anuência judicial?
Qual a mensagem que esses juízes e empresários, responsáveis por conceder ou defender essas autorizações, querem passar? Que com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças serão adultas que saberão o seu lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, sem refletirem sobre seus direitos, sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida. Afinal de contas, só o trabalho liberta…
Porque não aprovamos, pelo contrário, a proposta do presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, que defendeu o aumento na idade mínima legal, lembrando que filhos de ricos raramente começam a efetivamente antes dos 25 anos – e depois de muito investimento e tempo de formação. Enquanto a ralé é condenada a labutar desde cedo, não conseguindo evoluir em termos de formação e ocupando postos de baixa qualificação e mal remunerados.
Muito evoluímos no sentido de erradicar as piores formas de trabalho infantil. Mas não na velocidade necessária, como já discuti aqui várias vezes, com dados aos montes. As Conferências de Trabalho Decente são excelente momento para refletir: o Brasil está crescendo. Será que não é o momento de aumentarmos a proteção para que nossas crianças consigam, de fato, se tornar os bons profissionais que o país precisa para manter esse mesmo crescimento?
A discussão sobre as autorizações judiciais deve retornar na Conferência Nacional, junto com outras dezenas de propostas, mas também será uma constante em tribunais e nos corredores do Congresso porque a denúncia foi posta à mesa. Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação é bonita. Mas, pergunto: será que não imaginam que o trabalho infantil não precisa ser uma doença hereditária?
*publicado originalmente no Blog do Sakamoto.