Vinte anos após a Rio 92, os governantes de todo o mundo voltam a Rio de Janeiro para tentar construir as bases de uma economia que vai ajudar a humanidade a atravessar o Século 21.

O jogo não vai lotar o Maracanã como na final da Copa de 2014, ou mesmo atrair o mesmo número de torcedores que as Olimpíadas de 2016, no entanto, o mundo vai assistir com expectativa a entrada em campo de governantes de todo o planeta em junho de 2012, quando a Cúpula da Terra, também conhecida como Rio 92, completa 20 anos. A Rio+20 será a mais importante conferência ambiental da década e uma oportunidade para avanços importantes na construção do modelo de economia que levará a humanidade ao menos até o Século 22.

A Rio+20 vai se materializar em duas mega-atividades, a primeira no elegante Porto Maravilha, resultado da revitalização dos antigos armazéns do cais carioca, hospedará a conferência oficial. Receberá os donos do poder e as luzes da mídia. Serão protagonistas chefes de Estado, ministros, embaixadores, personalidades. Todos os países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) enviarão delegações. O embaixador Luiz Alberto Figueiredo Machado, subsecretário-geral do Itamaraty, imagina que poderá vir a ser “a maior conferência da história”.

A poucos quilômetros dali, estará a multidão. Os jardins que Burle Marx desenhou no Aterro do Flamengo abrigarão um evento paralelo, organizado por coalizões da sociedade civil e denominado Cúpula dos Povos. Terá a cara dos Fóruns Sociais Mundiais (FSMs). Reunirá dezenas de milhares de pessoas: chegarão de todas as partes do mundo, compondo uma babel fervilhante de idiomas, etnias, desejos. Estão envolvidas em múltiplos projetos de transformação social e nutrem distintos graus de oposição às políticas de quase todos os governos.

O economista Ignacy Sachs, defensor de uma economia baseada na biodiversidade, vê na Rio+20 uma oportunidade que não pode ser desperdiçada. Para ele, a economia não pode continuar a se valer dos recursos como se não houvessem consequências e os governos precisam agir para estimular uma economia baseada em outros valores. “Os governantes do mundo inteiro estarão no Rio de Janeiro, não podemos deixá-los sair de lá sem firmar alguns compromissos de mudanças”, diz. Ele acha que a sociedade civil deve se articular para apresentar propostas antes da conferência, porque no dia da reunião qualquer manifestação será apenas para a imprensa. “O sistema ONU chega a essas conferências já com as principais pautas acordadas, não dá para mudar pressionando na porta”, explica.

As relações entre os dois universos são difíceis. Em mais de uma ocasião, governos que sediavam reuniões da ONU, da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou do FMI receberam a sociedade civil com gás pimenta e cassetetes. Em outras, dão-lhe assento cosmético na tomada de decisões. Em contrapartida, governantes queixam-se de que encontros como os Fóruns Sociais Mundiais limitam-se a formular críticas genéricas – ignorando correlações de forças e se recusando a apresentar alternativas concretas às políticas que condenam. Os dois mundos acalentam, além disso, expectativas muito distintas em relação à Rio+20, como se verá.

Em teoria, o mandato oficial da Rio+20 é muito amplo. A conferência foi proposta à Assembleia Geral da ONU em 2007, por Lula, em um lance de rara sensibilidade política. Meses antes, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, outro órgão da ONU) havia lançado um relatório em que pedia medidas urgentes para reduzir as emissões de CO². Convocada oficialmente dois anos mais tarde, a Rio+20 deve avaliar os resultados dos vários acordos internacionais firmados na área de desenvolvimento sustentável (o que inclui as conferências sobre Mulheres, Cidades e outras). A partir desta análise, pode definir compromissos comuns em Economia Verde e Governança Global do Desenvolvimento Sustentável.

Esta definição geral oculta, porém, limites importantes. A representante do Pnuma no Brasil, Cristina Montenegro, não esconde a cautela quando se trata de debater expectativas sobre os resultados da conferência. “É preciso ter em mente que o mundo é muito diferente do que vivíamos na Eco 92. Acho temerário esperar os mesmos resultados”, alerta Cristina. Ela aponta duas grandes mudanças: uma na conjuntura internacional, outra no interior do próprio sistema ONU.

A segunda é a menos conhecida do público, “a Eco 92 se realizou em um momento no qual já estavam amadurecidas, nas Nações Unidas, três grandes convenções internacionais sobre Ambiente e Desenvolvimento. As que tratam de Mudanças Climáticas (UNFCCC) e Biodiversidade (UNCBD) foram firmadas ali mesmo, no Rio, e a de Desertificação (UNCCD), três anos mais tarde. Mas hoje, não há, na ONU, nenhum debate capaz de gerar, em curto prazo, compromissos desta envergadura”, diz Cristina Montenegro.

A Rio+20 seria, então, uma encontro faustoso em torno do nada? A representante do Pnuma rejeita esta visão pessimista. Para ela, os tempos são difíceis mas há tarefas estratégicas a realizar. A principal delas seria fortalecer, na estrutura das Nações Unidas, as agendas relacionadas a Ambiente e Desenvolvimento – que hoje não ocupam o primeiro plano. Desde 1972, quando as Nações Unidas realizaram em Estocolmo sua Conferência sobre Ambiente Humano – uma precursora da Eco-92 – multiplicaram-se os órgãos que lidam de alguma maneira com os dois temas. Além de Pnud e Pnuma, partes do sistema ONU como a FAO (para Agricultura), Unesco (Cultura), Unido (Desenvolvimento Industrial) e OMM (Meteorologia) criaram braços ligados a florestas, biotecnologia e hidrologia, por exemplo. Como resultado, diz Cristina “há uma dispersão de iniciativas, recursos, visibilidade. O conjunto das organizações que tratam de Ambiente tem muito menos força que a Organização Mundial do Comércio”. Ou seja, reproduz-se a hierarquia básica do sistema, que submete as relações sociais à lógica dos mercados.

Sobre mudança nas estruturas da ONU relacionadas a Desenvolvimento e Ambiente, há, sim, estudos avançados, relata Cristina. Ela espera que gerem uma decisão no Rio. “Há quatro ou cinco fórmulas na mesa. Pode ser uma Organização Mundial do Meio Ambiente, uma agência que reúna  Pnud e um Pnuma muito vitaminado. Não me inclino por nenhuma, a priori. Qualquer que seja o modelo, o importante é ter uma instituição forte, com peso e mandato renovado”.

Diretora de uma das maiores ONGs brasileiras – a Fase Solidariedade e Educação – co-coordenadora da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), a carioca Fátima Mello está consciente das dificuldades para arrancar, dos governos presentes à Rio+20, compromissos sólidos com a preservação do ambiente e combate às desigualdades. “Estamos tocando em capital e poder. A transição para outro tipo de economia envolve interesses poderosos. A criação de um sistema democrático de governança mundial não interessa aos membros do Conselho de Segurança da ONU. Mesmo Estados como o Brasil temem aventurar-se em favor de uma nova estrutura e arriscar os espaços que conquistaram no G-20, por exemplo”. Por isto, Fátima está concentrada em dar sentido ao fórum da sociedade civil. “A mobilização tende a ser enorme. Minha preocupação é com os resultados. Temos de ir além da mera denúncia, e começar a debater os caminhos para superar as relações sociais hoje hegemônicas”. Não se trata de um novo plano para tomada do Palácio de Inverno. “As alternativas ao capitalismo existem e estão sendo praticadas. São minoritárias, mas expandem-se por toda parte. Manifestam-se na economia solidária, na luta pela circulação não mercantil da cultura e conhecimento, nas redes de software livre, na agroecologia. Cabe-nos estimulá-las, dar-lhes visibilidade, permitir que se multipliquem”.

No entanto, o Estado continua a ser o principal espaço onde se legitimam os direitos. Como tantas outras, as reivindicações ligadas ao desenvolvimento sustentável só têm razão de ser se aspiram tornarem-se políticas públicas. É nelas que Rubens Bor identifica a chave capaz de destravar as negociações internacionais sobre ambiente e combate às desigualdades. Engenheiro e ambientalista, Born é participante ativo do comitê de quinze organizações que prepara a Cúpula dos Povos. Representa, junto com Aron Belinky, a ONG Vitae Civilis, que reúne, em seu site, a documentação mais completa sobre a Rio+20, vista a partir da ótica da sociedade civil. Ele vê uma grande janela de oportunidade na conjuntura internacional. “A Eco-92 definiu uma estrutura avançada de políticas. Mas foi seguida pelos anos do neoliberalismo, que recomendavam reduzir o Estado ao mínimo e enxergavam no mercado o instrumento mais virtuoso para reger a sociedade. Uma década depois, o primeiro balanço da grande conferência, feito na chamada Rio+10 (em Johannesburgo), sacramentou essa visão tacanha”.

O cenário, agora, é outro, frisa Born. “Os próprios mercados reconhecem que precisam da mão do Estado. A Rio+20 pode recuperar o terreno perdido e conservar um feixe de políticas públicas para transição a um novo modelo.” Quais seriam estas políticas? Quando Rubens Born começa a elencar exemplos, surge um desenho paradoxal. As propostas só soam utópicas se vistas a partir da ótima de um mundo submetido às lógicas de mercado. Não constituem um programa dirigido a vanguardas revolucionárias, mas a seres humanos comuns, preocupados ao mesmo tempo com o planeta e com suas responsabilidades cotidianas.

Dois breves exemplos, entre milhares de outros, são ilustrativos. Born pensa que Lula estava coberto de razão ao canalizar recursos para a indústria, visando a evitar demissões, durante a crise financeira. Mas ressalva: “os benefícios fiscais gerariam os mesmos empregos, se fossem destinados ao transporte coletivo. Nesse caso, ajudariam a reverter a cultura de idolatria ao automóvel, que está tornando insuportável mover-se nas metrópoles”. O ambientalista também lembra: estudos recentes preveem desabastecimento de água em algumas das grandes áreas metropolitanas brasileiras, dentro de poucas décadas. O preço dos imóveis nas áreas centrais está provocando migração para as periferias – onde, em geral, situam-se os mananciais. Ele tem uma proposta perfeitamente exequível para enfrentar a ameaça: “por que não iniciar políticas de reforma urbana que, além de resolverem a encruzilhada ambiental, gerarão uma grande quantidade de empregos verdes?”. Mas, para avançar na construção das novas lógicas sociais e conquistar alguma vitória na preservação do ambiente e redução das desigualdades, a sociedade civil precisa ser capaz de apresentar propostas claras. Os próximos doze meses dirão se este primeiro passo é possível. (Envolverde)