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O cânhamo renasce na Espanha entre desconfianças

Parte de uma plantação de cânhamo nas Alpujarras, na cidade de Granada. Foto: Cortesia da AEPTC
Parte de uma plantação de cânhamo nas Alpujarras, na cidade de Granada. Foto: Cortesia da AEPTC

 

Málaga, Espanha, 21/5/2014 – A Espanha assiste o renascer do cânhamo, uma variedade da espécie herbácea Cannabis sativa com baixo conteúdo psicoativo e matéria-prima milenar de inumeráveis produtos alimentícios, têxteis e medicinais. “O cânhamo é cultivado desde o princípio dos tempos por suas propriedades nutritivas e seus benefícios para a saúde. É uma planta que remineraliza a terra”, explicou Pilar López, da Cooperativa Galihemp, que se dedica à sua transformação e comercialização na cidade de Lugo.

A União Europeia (UE) permite a produção de cânhamo industrial e hortícola quando a concentração de tetrahidrocanabinol (THC), o elemento psicoativo que contém, não supere 0,2%, já que há subespécies e variedades de Cannabis sativa que contêm entre 0,5% e 5%, das quais se obtém maconha e haxixe.

O Real Decreto 1729/1999, de 12 de setembro de 1999, autoriza 25 variedades de cânhamo industrial para cultivo na Espanha e estabelece as normas para a concessão das ajudas ao linho têxtil e ao cânhamo. Isso consagra o retorno de um cultivo milenar como alimento e para elaborar fibras, que inclusive teve um auge especial durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Mas, em 1937, os Estados Unidos proibiram o uso do cânhamo para favorecer o algodão e as fibras sintéticas.

Assim, a ancestral indústria afundou e houve um êxodo dos camponeses produtores. O golpe definitivo foi dado por uma lei local sobre periculosidade e delinquência, em 1970, que, junto a convenções internacionais sobre a Cannabis, contribuíram para seu desuso.

O químico catalão Josep María Funtané contou à IPS que descobriu as propriedades terapêuticas do cânhamo quando ficou doente de câncer e comprovou que o ajudava a amenizar os efeitos secundários da quimioterapia. Por isso, em 2011, decidiu criar, na cidade de Barcelona, a Vitrovit, empresa de produtos medicinais derivados dessa planta e também de cosméticos e fertilizantes.

Os pacientes costumam precisar da Cannabis só dos compostos menos psicoativos, com baixo THC, e com o máximo conteúdo possível de canabidiol, o canabinoide não psicoativo. Possui efeitos paliativos analgésicos contra a dor como a maconha, mas com um mínimo de THC. Funtané prepara o mapa espanhol para a recuperação do cultivo do cânhamo industrial, que oferecerá informação detalhada por comunidades e províncias sobre essas plantações emergentes, que se caracterizam por seu rápido crescimento e sua adaptação à maioria dos terrenos.

Agricultores, produtores e comerciantes de cânhamo industrial concordam em ressaltar seu enorme potencial, mas também lamentam que seja preciso enfrentar detenções e apreensões de mercadorias. No dia 7 deste mês, as autoridades fecharam um “grow-shop terapêutico” (loja de cultivo) com produtos derivados da Cannabis em Calahorra, povoado da comunidade de La Rioja. “Os guardas civis chegaram sem ordem judicial e fecharam a loja”, contou à IPS seu proprietário, que só forneceu o primeiro nome, Dionisio.

“Desde janeiro as autoridades apreenderam três de meus envios de cânhamo industrial, ao confundi-los com maconha, com prejuízo para lojas e clientes finais”, queixou-se à IPS outro produtor, Miguel Arrillaga. Há “uma epidemia de ignorância e desconhecimento” sobre um cultivo que recebe subvenções, acrescentou.

Arrillaga, como outros produtores ouvidos pela IPS, compra as sementes certificadas de uma variedade legal na França, porque a Espanha não realiza essa etapa, da mesma forma que Alemanha, Suíça, Noruega e outros produtores europeus. Suas sementes são plantadas por agricultores em campos da comunidade de Andaluzia. Vende desde a semente para elaborar leite, até folhas para infusões, miolo para alimentação, sabão ou óleo cru como condimento ou hidratante para a pele.

Esta produção “poderia ser uma revolução verde que absorveria desempregados no meio rural nesse momento de crise econômica”, afirmou à IPS o presidente da Associação Espanhola de Produtores e Transformadores do Cânhamo (AEPTC), Fernando Montero. A entidade foi criada em 2012, no município de Bubión, no coração de La Alpujarra, na província de Granada. Montero, que vende cânhamo junto com seu filho em sua empresa La Karaba, reconhece que, apesar de cumprir “exaustivamente” todos os requisitos legais, planta “com certo medo” de uma intervenção das autoridades em algum momento.

O tenente da Guarda Civil (polícia militarizada) da cidade de Algeciras, em Andaluzia, Pablo Cobo, explicou à IPS que “embora não seja o que aparenta ser”, um pacote de folhas de cânhamo industrial tem o mesmo aspecto e cheiro de outras variedades, como a maconha. No caso de as autoridades detectarem, por exemplo, o envio ou recebimento de um pacote de folhas de cânhamo, os resultados de suas primeiras análises dão positivo, já que localizam qualquer traço de THC, por menor que seja.

Assim, em seguida se ativa um protocolo de apreensão e posterior envio das amostras às autoridades sanitárias para uma segunda análise em laboratório. “O problema está nos primeiros testes e na identificação feitos pelas autoridades”, que não são confiáveis até uma segunda análise de contraste, apontou à IPS um advogado que pediu para não ser identificado.

Enquanto se comprova se a Cannabis respeita os limites legais de substância psicoativa, o produto pode permanecer apreendido por semanas ou meses, denunciou Arrillaga, que também se referiu ao agricultor granadino Juan Zurita, detido em várias ocasiões por delitos contra a saúde pública e preso desde fevereiro.

A Espanha assinou a Convenção Única de 1961 sobre Entorpecentes, o Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 e a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988, que censuram a plantação, produção e comércio da Cannabis como droga, mas não restringem a produção de cânhamo industrial.

Com a fibra do cânhamo pode-se confeccionar roupa, cordas e papel, enquanto o óleo de suas sementes serve como biocombustível e na preparação de alimento para o gado. “Quer coisa melhor do que trabalhar com algo tão bom”, pontuou López, da Galihemp, que produzirá pasta de cânhamo para fazer papel. A cooperativista disse à IPS que “é uma vergonha a ignorância da Guarda Civil em relação a essa planta em alguns lugares da Espanha”.

Os obstáculos se acumulam para o setor na Espanha, onde é difícil encontrar até secadores para as sementes, enquanto na França, Alemanha, Áustria e outros países, os hectares destinados ao cultivo se multiplicam.

López acredita que o futuro do cânhamo industrial na Espanha será “esplendoroso” e não tem “nenhuma dúvida” de que irá adiante, embora reconheça que o desconhecimento e os interesses das grandes indústrias não jogam a favor. “Há uma série de indústrias potentes, como a têxtil ou a do aço, às quais não interessa o potencial do cânhamo e que não admitirão perder mercado”, destacou Funtané.

O cânhamo é utilizado para fabricar peças para a indústria automobilística, e suas fibras unidas, empregadas na construção civil, constituem um isolante térmico e acústico regulador da umidade. Envolverde/IPS