A crise nuclear criou uma nova vertente na requintada culinária japonesa, o cardápio atômico. O que era apresentado como um pequeno problema temporário, tornou-se, seis meses depois, um grave problema sócio-econômico. Vacas, javalis, peixes frutas e folhas de chá, entre outros produtos, apresentam contaminação por césio. Arroz também está sob suspeita. Milhares de agricultores e pescadores exigem indenização.
A crise aberta em Fukushima 1 continua a aprofundar-se. Além da questão energética, que aflige os japoneses, a fuga da radiação parece prosseguir sem que a população tenha informações ou meios de evitar as consequências.
Dias após o desastre nuclear, enquanto a TEPCO e o governo insistiam que não havia risco para a população, os fatos foram provando o contrário. O primeiro indício dessa grande mentira foi a divulgação pela imprensa de que o leite e alguns tipos de verduras estavam contaminados pela radiação. Na sequência foi descoberto que a água, mesmo em Tóquio, a quilômetros de Fukushima, estava contaminada, mas, segundo eles, num nível não prejudicial às pessoas. Mas aconselhou-se que essa água não fosse dada a crianças pequenas.
A crise nuclear criava, assim, uma nova vertente na requintada culinária japonesa, o cardápio atómico O que era apresentado como um problemazinho temporário, seis meses depois, tornou-se um grave problema sócio-econômico.
O javali atômico
Para poder escrever sobre este tema, tive de estar atento, com uma lupa na mão, para, em alguns casos, encontrar informações, que julgo relevantes, nos pés de página dos jornais, como aconteceu esta manhã.
Numa breve nota, comunicava-se que, mais uma vez, fora detectada radioatividade acima da estabelecida por lei em gado bovino de corte da província de Iwate. Isso, alguns dias depois do governo afirmar que o gado proveniente dessa província não estava contaminado e ter levantado a proibição da venda da carne produzida nas províncias do nordeste. A questão do gado bovino tornou-se uma grande e triste novela desde que, semanas atrás, foi descoberto que uma vaca, abatida num matadouro, num bairro central de Tóquio, estava contaminada pelo césio. Na sequência das averiguações confirmou-se que outras vacas também abatidas nesse matadouro também estavam contaminadas. A bola de neve foi aumentando e, com o passar dos dias, o governo proibiu que algumas províncias produtoras (Fukushima, Miyagi, Iwate, Tochigi) dispusessem o seu gado para abate.
A contaminação da carne bovina, provocada pelo consumo de palha de arroz que esteve exposta à radiação para a alimentação do gado, assestou um profundo golpe a todo o setor, levando pequeno produtores à bancarrota ou a grandes perdas. E, inclusive, grandes empresas, como é o caso da Agura Bokujo, criador de porte nacional, com 370 fazendas no sistema de franquia, com 145 mil cabeças, que entrou com um pedido de proteção à falência nos primeiros dias de agosto. O golpe atingiu matadouros, que já são negócios decadentes no Japão, supermercados, restaurantes especializados e grandes cadeias de restaurantes como a Gyukaku e Anrakutei, também especializadas na carne bovina. “Penso que não tenho outra opção além de abandonar a criação”, “não sei se os consumidores voltarão a consumir os nossos produtos”, são alguns dos comentários dos pequenos produtores. Durante o auge da crise descobriu-se que algumas centenas (quantas?) de gado bovino foram contaminados pelo césio.
Não existem dados precisos da quantidade de carne contaminada que foi vendida aos consumidores. O que sabemos é que a carne foi vendida na maioria das províncias japonesas, 37 ao todo. O governo comprometeu-se a comprar parte da carne e incinerá-la. Mas é de se perguntar se é correto o governo, e não a TEPCO, desembolsar dinheiro vindo dos contribuintes para resolver um problema criado por essa empresa.
No importantíssimo arroz, que é parte integrante da dieta japonesa, consumido por milhões em três refeições diárias, foi detectada também contaminação radioativa pelo césio, como nalgumas amostras do arroz produzido em Fukushima. Segundo o governo, os índices de contaminação estão abaixo dos estabelecidos por lei. Nas últimas semanas foram feitas várias análises de arroz produzidos nas províncias do nordeste e, inclusive, em Chiba, vizinha a Tóquio.
Um agricultor de Miyagi, Shigeo Kurosawa, decidiu fazer a sua análise por conta própria, através de um instituto privado. Vivemos o período de colheita de arroz e, igualmente, como no caso do gado bovino, todos os produtores de arroz do nordeste têm sofrido em maior ou menor grau as consequências da crise. O arroz de Fukushima foi o meu predilecto durante vários anos, mas decidi aboli-lo do meu cardápio e já nem sei se algum dia voltarei a comê-lo, mesmo que me garantam que é seguro. Várias análises foram feitas e, na maioria dos casos, demonstram que os índices são seguros, conforme os níveis do governo. Mas o óbvio é que toda a metodologia dessas pesquisas é, em primeiro lugar, bastante questionável.
A província de Fukushima é a segunda produtora de pêssegos. Nesse Verão, tive oportunidade de ver esses deliciosos pêssegos serem vendidos a preço de banana no mercado que costumo frequentar. Tradicionalmente, eram utilizados como presentes de Verão, enviados a familiares, amigos ou por empresas aos clientes ou pessoas relacionadas. Mas, neste ano, é evidente que não eram uma boa opção.
No dia 21 de agosto, a imprensa noticiou que a carne de um javali capturado em Kakuda, na província de Miyagi, no dia 7 de agosto, possuía nível de contaminação pelo césio quatro vezes superior ao limite de segurança estabelecido pelo governo. O governo fez um patético apelo para que a população evite comer animais selvagens. Esse javali atômico parece ser apenas a ponta de um grande iceberg, já que qualquer leitor é capaz de imaginar que esse pobre bicho pode não ter sido a única vítima da contaminação Muito provavelmente, por falta absoluta de pesquisas, um número pequeno ou grande de animais silvestres deve ter sofrido contaminação E é possível especular também que alguns seres humanos também podem ter-se transformado em homens atômicos desde o início da crise. Mas ainda não caíram nos matadouros nem nas lâminas das facas dos caçadores para que isso se possa provar. Mas o caso desse simples javali demonstra a profundidade do impacto ambiental causado pela central nuclear.
Situação dramática
Também nas notas de rodapé do Yomiuri do dia 4 de setembro li que recentes análises encontraram césio nas folhas de chá produzidas nas províncias de Saitama e Chiba, vizinhas a Tóquio, ou seja, longe de terminar, cada dia que passa a lista vai ficando mais longa. A situação é tão dramática que, apenas em Fukushima, tinham sido conduzidas mais de 4 mil inspecções.
Estes poucos exemplos ajudam-nos a fazer uma generalização sobre a verdadeira situação após o desastre de Fukushima 1. Um desastre que, ao contrário de ter sido controlado, continua a expandir-se, como os fatos vêm demonstrando. Se não fosse assim, como explicar que, seis meses após o desastre, a lista de contaminação continue a crescer.
O outro aspecto da discussão são os critérios e metodologia que estão a ser utilizados para fazer todo tipo de afirmações Vejamos o critério utilizado no gado bovino: o governo ira inspecionar uma vaca por fazenda a cada três meses! Alguém se sente seguro em comer essa carne? Por que três meses e não cinco, um mês, uma semana, a cada três dias?
A repercussão econômica é mais que evidente. Mas, o desastre tem feito com que milhões de pessoas sejam forçadas a pensar, diariamente, se é realmente seguro deleitar-se com o cardápio atômico que as autoridades insistem em afirmar que não são prejudiciais aos seres humanos. Por último, resta ainda um simples raciocínio: para que comer o cardápio atômico se é possível evitá-lo?
Em meados de agosto, alguns milhares de agricultores e pescadores de Fukushima realizaram uma manifestação de protesto no Parque Hibiya, em Tóquio, exigindo indenização pelos danos causados pela TEPCO às suas vidas.
* Tomi Mori é correspondente do Esquerda.Net em Tóquio.
** Publicado originalmente pelo Esquerda.Net e retirado do site Agência Carta Maior.