“Apenas cerca de 4% do Cerrado é protegido sob forma de unidades de conservação, há dificuldades de fiscalização e na maioria dos Estados ainda não há um zoneamento agroecológico”, constata o geógrafo da Unicamp, João Humberto Camelini.
A crescente ocupação do Cerrado brasileiro com cultura de cana-de-açúcar destinada à produção de etanol se explica por causa da proximidade do bioma com São Paulo, “de onde partem as ordens para coordenação da produção e de onde vem a tecnologia para montagem e manutenção das novas instalações”, esclarece o geógrafo João Humberto Camelini à IHU On-Line. Além de concentrar os principais grupos produtores de etanol, São Paulo é um “grande mercado consumidor e também nele encontram-se os principais portos, de onde o etanol pode ser direcionado ao mercado externo”.
Segundo o pesquisador, no ano passado, 172 usinas estavam instaladas no bioma, “número que vem crescendo continuamente”. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Camelini enfatiza que grandes empreendimentos geram diversos problemas econômicos, sociais e ambientais como “acidentes, poluição, prejuízos ao solo e à biodiversidade devido às queimadas, contaminação do ar e de águas com pesticidas, etc. Isto resulta na sobrecarga de serviços públicos como a saúde, principalmente em pequenos municípios nos quais o aporte populacional sazonal dos cortadores de cana representa um aumento percentual considerável em relação ao número de habitantes. Há uma transferência de responsabilidades, já que diversos problemas resultantes da produção de etanol acabam sendo resolvidos com recursos públicos”.
João Humberto Camelini é mestre em Geografia com dissertação intitulada Regiões Competitivas do Etanol e Vulnerabilidade Territorial no Brasil: o Caso Emblemático de Quirinópolis, GO, apresentada no Instituto de Geociências (IG).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há quanto tempo o Brasil investe na produção de etanol a partir da cana-de-açúcar plantada no Cerrado brasileiro? Percebe uma expansão dessa cultura na região? Por quais motivos?
João Camelini – No início da década de 1990, a desregulamentação do setor sucroenergético fez com que o controle sobre a produção não fosse mais centralizado no Instituto do Açúcar e do Álcool, o que criou um cenário muito atraente para os investimentos privados nesta atividade, já que as corporações poderiam finalmente direcionar suas estratégias de acordo com os interesses do mercado. Nesta época, o parque de usinas de São Paulo já estava bastante adensado, o que deu início a um movimento um pouco mais intenso de ocupação do Cerrado. Especificamente em relação ao etanol, não podemos esquecer que neste período o mercado interno estava totalmente enfraquecido devido ao fim do Proálcool. Então, seria necessário o surgimento de um fato novo que impulsionasse o setor. Bem, podemos identificar claramente que a adoção da tecnologia Flex Fuel a partir de 2003 foi um marco nesse sentido, visto que criou oportunidades para usineiros, montadoras e teve grande impacto de marketing sobre os consumidores. Como se isso não bastasse, o mercado externo passou a apresentar oportunidades mais concretas com a tendência à substituição parcial dos combustíveis por etanol em outros países. O conjunto destes fatores reforçou a necessidade de expansão do setor.
É facilmente perceptível que o Cerrado vem sendo ocupado com maior intensidade que o restante do país. Isso vem ocorrendo por diversos motivos, entre os quais podemos destacar a proximidade com São Paulo, de onde partem as ordens para coordenação da produção e de onde vem a tecnologia para montagem e manutenção das novas instalações. Lá estão instaladas as matrizes dos principais grupos, além disso, em São Paulo há um grande mercado consumidor e também nele encontram-se os principais portos, de onde o etanol pode ser direcionado ao mercado externo. As outras regiões oferecem algum tipo de restrição mais importante, que representei por meio de um mapeamento em minha pesquisa. São questões relacionadas à disponibilidade hídrica, clima e/ou solo inadequados, predominância de topografia imprópria para mecanização, impedimentos legais associados a aspectos ambientais etc. O fato é que o Cerrado é o veio natural da expansão sucroenergética no Brasil e que, do ponto de vista geográfico, a questão logística é central no entendimento deste direcionamento.
IHU On-Line – Quais são as empresas que investem no setor sucroenergético na região e quantas usinas existem no Cerrado?
João Camelini – Ao cruzarmos a delimitação do Cerrado fornecida pelo IBGE com as localizações das usinas no início de 2010, encontraremos 172 unidades instaladas, mas este número vem crescendo continuamente. Há diversos grupos que investem na construção de usinas no Cerrado e, como disse, eles geralmente são controlados por matrizes no estado de São Paulo, que é o “cérebro” da expansão. Alguns exemplos são os grupos Cosan, USJ, São Martinho, Farias, ETH Bioenergia dentre outros. É importante frisar também que o capital estrangeiro compreendeu que o momento é oportuno para investir no etanol e por isso está atuando de maneira bastante agressiva, o que colabora para tornar o setor ainda mais oligopolizado. De qualquer forma, tanto os grupos nacionais quanto estrangeiros não têm comprometimento algum com os interesses da população, já que isso não é da natureza das corporações, é função do Estado.
IHU On-Line – Como as plantações de cana-de-açúcar e a produção de etanol estão modificando a geografia e as terras do Cerrado brasileiro? A cana-de-açúcar é apropriada para o solo do Cerrado?
João Camelini – Esta é uma pergunta bastante interessante. Em geral, as pessoas levam em consideração o desmatamento direto realizado para o plantio de cana, mas se esquecem do desmatamento indireto. Explico: quando uma usina se instala numa região, ela tem que obter matéria-prima dentro de um raio aproximado de 40 quilômetros a partir do centro de moagem, o que exige grande ocupação nas proximidades, resultando num “mar de cana” que estamos habituados a ver em São Paulo. Para isso ela age agressivamente na substituição de outras culturas, como a soja, que, por sua vez, tem que migrar para novas áreas, gerando desmatamento. Essa preferência pela substituição se deve à redução de custos no preparo da terra para o plantio. Se a soja, sustentada por investidores capitalizados, não tem condições de medir forças com a cana, imagine a situação em que se encontram os pequenos produtores. É por isso que, do ponto de vista geográfico, uma das questões mais preocupantes é a especialização regional produtiva. Não é saudável que haja tamanha dedicação a um único setor.
O solo do Cerrado, no passado, foi considerado impróprio para uma série de culturas, mas com os recursos disponíveis atualmente é possível compensar as deficiências a custos aceitáveis. Com isso, pode-se afirmar que este fator econômico não restringe a atividade canavieira de forma significativa. Além disso, os centros de pesquisa trabalham continuamente para desenvolver variedades adaptadas às mais diferentes condições edafoclimáticas, diferentemente do passado, quando toda a pesquisa era voltada para as terras paulistas. Entre os grandes produtos agrícolas, além da cana-de-açúcar, há também o algodão e a soja, que tiveram excelente adaptação no Cerrado, onde é bastante difundida. Também planta-se milho, arroz e feijão em pequenas propriedades, o que leva muitos pesquisadores à conclusão de que o avanço da cana pode comprometer a produção de alimentos no Brasil.
IHU On-Line – Quais são as vantagens e as implicações da produção de etanol e cana-de-açúcar na região do Cerrado? Vislumbra uma condição de vulnerabilidade econômica, social e ambiental em função da produção sucroenergética?
João Camelini – Quando uma usina se instala num município, as pessoas logo pensam que ela trará consigo o “progresso” e ponto final. Isso é uma distorção presente no senso comum, associada ao ideário do “desenvolvimento”. Eu entendo que a dinâmica da ocupação do Cerrado com cana-de-açúcar tem diversos problemas, pois facilita o surgimento de algumas fragilizações, a começar pelo estabelecimento do regime de monocultura associado a mecanismos de expulsão gradual de pequenos produtores, que induz à especialização e dedicação de toda uma região a um único setor, algo muito perigoso, principalmente diante da iminente conversão do etanol numa commodity.
As oscilações bruscas nos preços poderão comprometer toda a organização local, já que ela estará inexoravelmente atrelada ao setor sucroenergético. Além disso, há também os desmatamentos direto e indireto já mencionados, acidentes, poluição, prejuízos ao solo e à biodiversidade devido às queimadas, contaminação do ar e águas com pesticidas, etc. Isto resulta na sobrecarga de serviços públicos como a saúde, principalmente em pequenos municípios nos quais o aporte populacional sazonal dos cortadores de cana representa um aumento percentual considerável em relação ao número de habitantes. Há uma transferência de responsabilidades, já que diversos problemas resultantes da produção de etanol acabam sendo resolvidos com recursos públicos.
IHU On-Line – O que mudou em Quirinópolis, Goiás, após a expansão da cana-de-açúcar?
João Camelini – O município passou a se dedicar intensamente à produção de etanol e açúcar, atraindo investimentos de dois grandes grupos: USJ e São Martinho, que controlam respectivamente as usinas São Francisco e Boa Vista. A força de trabalho do município ficou comprometida com o setor, direta ou indiretamente. O comércio local, por exemplo, conta com diversas revendas de máquinas, implementos, insumos e tudo o que é necessário para atender ao setor. O comércio é baseado em produtos fabricados em outras cidades; não há grande diversidade nas atividades produtivas, já que pequenos proprietários arrendaram suas terras para a produção de cana. A estrutura hoteleira é funcional. Então, só faz sentido se associada aos fluxos relacionados à produção de etanol. Enfim, tudo gira em torno das usinas e essa especialização tende a aumentar, pois há planos para a criação de um distrito industrial que poderá transformar o município numa espécie de Sertãozinho do Cerrado. Além disso, a administração municipal trabalha para que um terminal de cargas da ferrovia Norte-Sul seja criado ali, aumentando o potencial de atração do município. Eu costumo definir Quirinópolis como a nova centralidade do etanol no Cerrado.
Uma questão pouco discutida é a irradiação das consequências da ocupação canavieira. Quando uma usina é instalada num município, a tendência é que a área rural dos vizinhos seja ao menos parcialmente ocupada. Além disso, muitos municípios vizinhos se transformam em “cidades-dormitório” para os trabalhadores. Nestes casos, não existe a contrapartida do acréscimo na arrecadação, o que é mais perverso.
IHU On-Line – A plantação de cana-de-açúcar está se expandindo para outras regiões do país?
João Camelini – Sim. Ao que tudo indica a expansão do setor vem seguindo a lógica proposta pelo mapeamento apresentado em minha pesquisa, que identificou o Cerrado como foco da ocupação. O Triângulo Mineiro, norte do Paraná e sul do Mato Grosso do Sul também vêm se tornando alvos dos investimentos. É importante salientar que o Cerrado, do ponto de vista das empresas, é a opção mais interessante de expansão no momento. No entanto, com o tempo é provável que as redes logísticas se expandam para outras regiões e que isso intensifique a ocupação onde hoje não há grande interesse.
IHU On-Line – Em que consistem as políticas públicas destinadas ao setor sucroenergético atualmente? Quais seus limites? Que avaliação faz da política ambiental do governo brasileiro?
João Camelini – O papel do Estado em relação ao setor sucroenergético é importantíssimo para a compreensão da forma com que a vulnerabilidade territorial se potencializa. Hoje, os estados disputam os investimentos dos grupos usineiros, oferecendo uma série de vantagens para se tornarem atrativos. A competitividade deixa de ser um atributo associado apenas às empresas e torna-se algo presente também nos lugares. Isso faz com que ocorra o que Milton Santos chamou de “guerra entre os lugares”, em que há o esgarçamento do tecido federativo, que torna a nação fragmentada. O posicionamento do Estado facilita o uso corporativo do território, em que os grandes benefícios são privadamente apropriados, enquanto os problemas são socializados. No caso do Cerrado, Goiás é um dos estados que mais oferecem incentivos por intermédio do programa Produzir.
Vejo que a política ambiental do Brasil apresenta diversos mecanismos de proteção legal em relação à Amazônia e o Pantanal, enquanto o Cerrado fica mais exposto a condições como as que vemos atualmente. Por exemplo, apenas cerca de 4% desse bioma é protegido sob forma de unidades de conservação; há dificuldades de fiscalização e na maioria dos estados ainda não há um zoneamento agroecológico que possa ser utilizado como parâmetro de referência para a ocupação. Estas distorções aos poucos vêm sendo corrigidas com medidas como a criação do PP-Cerrado, mas a velocidade com que a agroindústria do etanol cresce é muito maior. É preciso que os mecanismos de proteção ao Cerrado sejam revistos com grande cautela, caso contrário ele poderá ser destruído de forma semelhante à Mata Atlântica.
IHU On-Line – O Brasil tem condições de se tornar autossustentável na produção de etanol? Que aspectos são fundamentais para que isso aconteça? Como vê a expectativa do governo brasileiro de dobrar a produção de etanol nas próximas duas décadas?
João Camelini – Hoje existe grande expectativa pela realização do potencial do mercado externo. Com a previsão de retirada parcial de subsídios ao etanol de milho nos Estados Unidos, surgirá uma grande oportunidade de negócio para o setor sucroenergético nacional. O Brasil vem se preparando para produzir enormes quantidades de etanol, o que envolve não apenas o surgimento de novas usinas, mas também o estabelecimento de infraestruturas logísticas que comportem o escoamento para os portos.
Levando em consideração as regiões em que há maior concentração de usinas, não há dúvidas de que a utilização de alcoodutos se apresenta como a alternativa que oferece maiores vantagens para o setor sucroenergético. Há projetos de corredores de exportação baseados neste modal em que o BNDES é um grande agente financeiro, o que demonstra a disposição do Estado em oferecer suporte logístico. Se observarmos o mapeamento destes projetos de alcoodutos, veremos que ao redor deles estão se formando clusters de usinas no intuito de viabilizar economicamente o investimento. Podemos dizer, então, que o Estado possui ferramentas para controlar parcialmente a expansão e que tem elementos sólidos para prever esta consolidação do aumento da produção para as próximas duas décadas. A questão é: qual será o custo desta expansão no que se refere à vulnerabilidade territorial, considerando as imensas regiões que se tornarão dedicadas ao setor para que o aumento da produção seja viabilizado? Os clusters de usinas resultarão no surgimento de “manchas” de ocupação com a monocultura canavieira, funcionalizando grandes porções do território, que estarão sujeitas às intempéries do mercado de commodities agrícolas.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.