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O Egito entre um movimento popular e um golpe militar

Manifestantes na Praça Tahrir do Cairo comemoram a derrubada do presidente Mohammad Morsi. Foto: Hisham Allam/IPS
Manifestantes na Praça Tahrir do Cairo comemoram a derrubada do presidente Mohammad Morsi. Foto: Hisham Allam/IPS

 

Cairo, Egito, 8/7/2013 – Em menos de três dias o Egito deixou de estar sob controle de religiosos islâmicos e passou para as mãos de militares e logo para as de civis laicos. Mohammad Morsi, o primeiro presidente democraticamente eleito do país, foi derrubado pelo exército no dia 3, depois de manifestações em massa, que pediam sua saída, por ocasião do aniversário de seu primeiro mandato. As poderosas forças armadas lançaram no dia 1º um ultimato de 48 horas para que Morsi atendesse “as reclamações do povo”, um dia após milhões de manifestantes irem às ruas de todo o país exigindo sua renúncia.

A posição dos Estados Unidos em relação aos seus aliados no Egito (a Irmandade Muçulmana) foi crucial. O presidente Barack Obama fez saber que Washington avaliará as consequências que a queda do governo Morsi pode ter na ajuda que dá ao Egito. Cerca de 20% do orçamento militar egípcio depende de fundos procedentes dos Estados Unidos. Porém, Obama se absteve de falar em golpe de Estado, enquanto muitos egípcios consideram que se tratou de uma mobilização que completa a revolução de 25 de janeiro de 2011, que teve o apoio do exército.

Menos de 15 horas depois de ter anunciado os planos para a transição, o ministro da Defesa, Abdel Fatah al-Sisi, afirmou que a nova Constituição estava suspensa e nomeou o presidente do Supremo Tribunal Constitucional, Adly Mansour, presidente interino por seis meses, segundo a Carta Magna de 1971. Após a queda de Morsi houve várias mudanças. O índice da bolsa de valores subiu 7,5%, algo que não se via desde 2010. O valor das ações não caiu até o fim do dia, o que também foi um êxito sem precedentes na história da bolsa do país. O analista econômico Mohsen Adel afirmou à IPS que também se espera aumento sustentado dos indicadores bancários.

Em escala regional, os fatos do dia 3 parecem contribuir para que o Egito mantenha seu papel de liderança no mundo árabe e renove relações com vários países vizinhos. Catar, o apoio mais firme de Morsi, anunciou, por meio da rede de televisão Al Jazeera, que apoiará o Egito enquanto líder do mundo árabe e islâmico. O novo emir catariano, Tamim ben Hamad, enviou suas felicitações ao novo presidente e ao povo egípcios. Tanto Arábia Saudita quanto os Emirados Árabes Unidos (EAU) informaram ao Cairo que fornecerão financiamento e petróleo.

As relações entre Egito e Emirados Árabes estavam tensas após a prisão em território dos Emirados de uma suposta célula terrorista formada por integrantes da Irmandade Muçulmana de Morsi. Os Emirados se negaram a libertá-los, e vários dirigentes da Irmandade Muçulmana atacaram as autoridades dos Emirados. No dia 17 de junho, Esam Al-Eryan, vice-presidente do Partido Liberal e Justiça, braço político da Irmandade Muçulmana, pediu, no Conselho da Shura (câmara alta do parlamento), que o embaixador egípcio transmitisse esta mensagem aos Emirados: “O povo dos Emirados é ignorante e tem um comportamento vergonhoso, e a potência nuclear do Irã invadirá o país e o escravizará”.

“As relações egípcias com muitos países vizinhos serão testemunha de uma enorme mudança”, disse à IPS Emad Gad, diretor do Instituto Al-Ahram para os Estudos Estratégicos e Políticos. Gad admite que as relações com os Estados Unidos podem ser tensas no momento, pelo apoio de Washington a Morsi e à Irmandade Muçulmana. As relações estratégicas entre os dois países têm raízes profundas, e se Washington continuar pressionando o Egito, ameaçando-o com redução ou interrupção de sua ajuda militar, também pode alterar os vínculos entre Cairo e Moscou, alertou. Tal mudança representaria um perigo importante para os Estados Unidos, porque, nesse caso, o Egito passaria a obter armas da Rússia, o que ameaçaria tanto o controle norte-americano sobre o exército egípcio quanto a segurança nacional dos Estados Unidos.

As tensões entre Egito e Síria se apaziguarão e é possível que não derivem em nenhuma decisão hostil contra o regime de Bashar al Assad, continuou Gad, acrescentando que  o novo governo tampouco se inclinará a apoiar Damasco, por medo de prejudicar o povo sírio ou despertar a desaprovação da comunidade internacional. “Egito e Rússia protagonizarão um clima de cooperação de êxito no futuro próximo e em diferentes níveis”, pelo apoio de Moscou às recentes mudanças egípcias, previu. “Desde o começo das profundas transformações no Oriente Médio declaramos apoio às aspirações legítimas do povo egípcio a uma vida melhor, com liberdade e renovação democrática. A posição da Rússia se mantém invariável”, afirmou o Ministério das Relações Exteriores russo em um comunicado divulgado no dia 4.

O povo egípcio parece observar a imediata prisão dos dirigentes da Irmandade Muçulmana não como um golpe militar, mas como uma medida de precaução para impedir que o movimento lançasse seus indignados seguidores às ruas e evitar a violência. Nos últimos meses, atos de sabotagem deixaram dezenas de mortos e centenas de feridos. Em seu último discurso, Morsi buscou se mostrar como um presidente confiante em si mesmo e legítimo, e sugeriu que qualquer medida contra sua pessoa seria um golpe contra a legalidade.

“Não se pode rejeitar o projeto islâmico, pela força de seus seguidores e pelas energias que levaram às ruas do Egito. Será muito difícil mantê-los longe da cena, porque são muitos e por causa de sua contribuição política”, disse à IPS o porta-voz do Partido Salafista Al-Watan, Ahmed Badie, fundado este ano. Badie acredita que a queda da Irmandade Muçulmana foi natural, já que o movimento havia acumulado erros e se negava a escutar as sugestões que seu partido fazia.

O fracasso da experiência da Irmandade Muçulmana não significa que outros partidos políticos islâmicos abandonem o objetivo de estabelecer um estado islâmico, mas demonstra o quanto é difícil conseguir tal objetivo. O mapa do caminho apresentado pelos partidos islâmicos busca garantir a segurança de seus ativistas e seguidores, para evitar que a polícia volte às suas práticas violentas ou às medidas que aplicava contra os islâmicos, como obrigá-los a se barbear, apontou Badie.

O dirigente também expressou temor de que o novo regime proíba os islâmicos de criarem partidos políticos, sendo um obstáculo ao projeto islâmico. Para ele, as detenções de líderes da Irmandade Muçulmana foi uma evidente tentativa de dar uma imagem positiva ao golpe militar. Mokhtar Nouh, ex-líder da Irmandade Muçulmana disse às IPS que “o projeto islâmico não cai com grupos ou indivíduos. Durante o governo de Gamal Abdel Nasser, foi dado como morto, mas Omar el-Telmessany (terceiro guia supremo da Irmandade Muçulmana) trabalhou, desde 1990, para devolvê-lo à cena política, inclusive nas condições de exclusão do regime de Hosni Mubarak”. Envolverde/IPS