Notei, numa mesa ao lado, uma menina que escrevia e consultava um dicionário. Agachei-me para conversar com ela. “Você está procurando no dicionário uma palavra que você não sabe?”, perguntei.
“Não”, ela me respondeu. “Eu sei o sentido da palavra, mas estou a escrever um texto para os miúdos e usei uma palavra que, penso, eles não conhecem. Como eles ainda não sabem a ordem alfabética e não podem consultar o dicionário, estou a escrever um pequeno dicionário ao pé da página do meu texto para que eles o compreendam.” (Veja o início da história aqui, aqui, aqui, aqui e aqui)
“Estou a escrever um texto para os miúdos” foi o que ela disse. Os que já sabem tornam-se naturalmente professores dos que ainda não sabem. Esta é a pedagogia natural das crianças quando elas querem ensinar as outras crianças a brincar. As que sabem ensinam as que não sabem, sem que para isso tenham de saber teorias.
Lembrei-me da deliciosa frase de Daniel Pennac no seu livro Como um Romance: “Que espantosos pedagogos nós éramos quando não nos preocupávamos com a pedagogia…”. As relações de aprendizagem e ensino se dão por meio das pontes poéticas que o amor constrói. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade. Mais que aprender saberes, as crianças estão aprendendo valores de solidariedade. A ética é o ar que se respira silenciosamente, sem explicações, naquela sala imensa.
Numa parede encontrei dois quadros de avisos. Num deles estava escrita a frase: “Tenho necessidade de ajuda em…”. E, no outro, a frase: “Posso ajudar em…”. Qualquer criança que esteja tendo dificuldades em qualquer assunto coloca ali o assunto em que está tendo dificuldades e o seu nome. “Não entendo a regra de três”, assinado “Maria”. O Gabriel, passando por lá, vê a mensagem da Maria e, sem que a professora dê qualquer ordem, procura a Maria para lhe explicar a matemática da regra de três.
Dei-me conta então da importância da arquitetura no espaço escolar. A arquitetura, ao estabelecer espaços, determina os caminhos possíveis e permitidos. É preciso que os espaços sejam livres para que as relações aconteçam com liberdade. A arquitetura de corredores e salas, comum em nossas escolas, aprisiona as relações.
Lembrei-me então do que me dissera a menina ao me informar que também não havia separações no tempo. Relógios e campainhas são artifícios para obrigar o pensamento a fazer ordem unida. Toca a campainha: é hora de pensar matemática, 45 minutos pensando matemática. Toca a campainha, é hora de parar de pensar matemática, hora de pensar geografia, 45 minutos pensando geografia, toca a campainha, hora de parar de pensar geografia, hora de pensar literatura…
Os toques de campainha ou qualquer artifício semelhante contêm uma psicologia do pensamento. Como se o pensamento obedecesse às ordens do relógio. Algo semelhante ao que acontece com os programas de televisão: a marcação das horas liga e desliga os “programas” do pensamento.
Vez por outra um curioso me pergunta sobre as horas que separo para pensar… Sei não… Talvez as horas de insônia ou debaixo do chuveiro ou numa viagem de carro ou avião… O pensamento não se anuncia. Ele simplesmente vem. Todas as vezes que tentei marcar hora para pensar, as ideias me fugiram.
* Rubem Alves é educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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*** Publicado originalmente no Portal Aprendiz.