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O espírito de Sochi está muito longe dos sírios no Curdistão

Duas crianças curdas da Síria sorriem diante de seu monitor, durante sua primeira experiência com os esquis nas montanhas curdas do Iraque. Foto: Nuzha Ezzat/IPS
Duas crianças curdas da Síria sorriem diante de seu monitor, durante sua primeira experiência com os esquis nas montanhas curdas do Iraque. Foto: Nuzha Ezzat/IPS

 

Penjwin, Curdistão Iraquiano, 17/2/2014 – Hasán Jishman sorri ao deslizar sobre esquis pela primeira vez em sua vida. As condições da neve são perfeitas durante o fim de semana, mas aqui ninguém ouviu falar de Sochi. Jishman é um refugiado sírio de apenas 11 anos. E estas são as montanhas curdas do Iraque.

Situada 300 quilômetros a nordeste de Bagdá e na fronteira com o Irã, a aldeia montanhosa de Penjwin era parada obrigatória para as famílias que fugiam da repressão do regime de Saddam Hussein (1979-2003), e continua sendo para caravanas de contrabandistas que usam mulas para transportar seus produtos.

Mas os moradores locais já há quatro anos esquiam em uma área que se sabe está limpa de minas terrestres. A neve passou de ser sinônimo de fome e miséria para uma alternativa de lazer, uma palavra quase desconhecida nessa região do mundo. A guerra síria, porém, continua sendo uma lembrança muito recente para as cerca de 20 crianças que chegaram de ônibus, pela manhã, às instalações.

“Fugimos da Síria por causa da guerra. Havia muitos mortos e a comida era muito cara”, contou Hasán à IPS. Esse menino cresceu em Hasaka, 590 quilômetros a nordeste de Damasco, antes de cruzar a fronteira há quase um ano. Hoje destaca uma das sensações que teve após usar os esquis: “recordei muitos dos bons momentos com meus amigos na Síria”, disse.

Uma sensação muito diferente da que vivem milhares de atletas que participam, desde 7 de fevereiro e até o dia 23, dos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, cidade do sul da Rússia encravada entre as montanhas nevadas do Cáucaso e o Mar Negro.

Hasán vive atualmente no campo de refugiados de Arbad. Situado 260 quilômetros a nordeste de Bagdá, é um dos seis acampamentos da Região Autônoma Curda nos quais, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), sobrevivem mais de 200 mil pessoas procedentes da Síria. Diante de um dos invernos mais frios de que se tem lembrança na região, sob barracas de campanha, as crianças contemplam incrédulas as possibilidades que oferece um esporte que jamais pensaram em praticar.

Três anos mais velho do que Hasán, Helin Kaseer já é capaz de identificar aqueles que forçaram sua fuga de sua Girke Lege natal, uma aldeia curda 800 quilômetros a nordeste de Damasco. “Fugimos da Síria há oito meses devido aos combates com os islâmicos. Várias de minhas amigas foram sequestradas e já não podíamos ir à escola”, contou esta menina de profundos olhos verdes para quem a oportunidade de esquiar foi uma “tremenda surpresa”. Helin espera poder voltar, pois “muitas crianças do acampamento queriam vir mas não havia lugar para todos”.

“Gostaria de ter material para muitos mais, mas no momento temos que nos conformar com umas poucas dezenas de equipamentos”, disse à IPS o monitor Igor Urizar, um dos incentivadores da atividade. Além disso, “não foi fácil conseguir autorização para que pudessem sair do acampamento por um dia”, acrescentou este esquiador basco de 38 anos e autêntica alma da primeira escola de esqui do Iraque.

Antes de visitar Penjwin pela primeira vez, em 2010, Urizar era instrutor de esqui na cidade espanhola de Navarra, onde cada um dos cinco mil estudantes desfruta de uma semana de esqui. Com apoio da Tigris, uma associação basco-curda de cooperação, seu sonho de exportar essa iniciativa para as montanhas curdas caminha para a concretização.

Os moradores e as autoridades se mostram esperançosas diante da que já é a primeira escola de esqui do Iraque, bem como com a recém-inaugurada escola de Ranya, 430 quilômetros a nordeste de Bagdá. Falah Salah, coordenador curdo da Tigris, afirma que o projeto pioneiro conta, pelo segundo ano consecutivo, com o apoio pessoal de Hero Jan, mulher de Jalal Talabani, o presidente do Iraque.

Este curdo de Kirkuk será candidato a uma cadeira parlamentar nas eleições legislativas de 30 de abril, por isso passará o cargo para Jalid Mohammad Qadir, diretor do Centro para a Juventude em Penjwin. “Graças a um convite da Tigris, há três anos tivemos a oportunidade de comprovar no terreno, nos Pirineus (a cordilheira que separa Espanha e França), como a neve pode oferecer uma oportunidade de desenvolvimento sustentável”, explicou Qadir à IPS.

Nos últimos anos, “a Escola de Esqui do Vale do Roncal formou jovens curdos que são os que agora dão as aulas. O número de visitantes à região é cada vez maior e inclusive recebemos a visita de um grupo de holandeses e franceses”, acrescentou Qadir enquanto organizava a fila de crianças que, impacientes, esperavam sua vez.

Mohammad Ibrahim já está preparado, após calçar as botas sobre seus três pares de meias. Chegado de Tirbespiye, 700 quilômetros a nordeste da capital síria, este curdo de 13 anos sorri, embora afirme que nada ajudará a apagar a recordação do que viu. “Os jihadistas começaram a assediar e matar os curdos da região. Não havia comida, nem gasolina. Escapamos quando tivemos oportunidade. Nunca senti tanto medo em minha vida”, contou à IPS.

Sua história lembra a de Noura Naamat, de 14 anos. Chegou há cinco meses procedente de Derik, outra localidade que fica 700 quilômetros a nordeste de Damasco, carregada de sacolas com o pouco que sua família conseguiu reunir antes de abandonar o lugar.

Ao final do dia, as crianças voltam para o ônibus que os levará de volta ao acampamento. Urizar respira tranquilo após o estresse dos últimos dias, aumentado por obstinadas previsões de chuva que, felizmente, não aconteceram. Porém, reconhece seus sentimentos.

“Não posso deixar de pensar que as crianças voltarão a passar a noite nessas barracas, e nessa prisão (de fato) que não podem abandonar sem permissão”, afirmou enquanto tirava os esquis e os guardava. Por isso, “só desejo poder voltar a repetir esta, ou qualquer outra atividade que as ajude a recuperar sua infância. Ainda que por algumas horas apenas”, ressaltou. Envolverde/IPS