O que não se viu nesse processo de ajuda governamental às instituições financeiras em crise nos Estados Unidos e Europa, foi uma ação mais incisiva do Estado em tomar assento nos conselhos de administração e mudar a gestão dos bancos. Na prática, romper com a irresponsabilidade das gestões até a véspera da crise.
A avalanche de notícias a respeito da crise econômico-financeira a cada dia, a cada hora, é tão grande que às vezes perdemos a capacidade de avaliar o processo de forma mais abrangente. No entanto, uma questão que surge de forma recorrente, e confirma um dos traços característicos da crise atual, é a relação dos governos com os bancos. Em especial, no caso, com as instituições financeiras que apresentam dificuldades de caixa e que ameaçam “quebrar”, como se diz no jargão dos operadores do mercado. Aliás, eis uma boa imagem para descrever o processo de falência.
O modelo adotado pela grande maioria dos países do mundo capitalista incorpora, na verdade, o risco e a probabilidade da falência dos bancos. A regulação e a fiscalização do mercado bancário por uma autoridade monetária – ao estilo do Banco Central – é a expressão de tal incerteza.
Com o agravante de que as instituições financeiras, cada vez mais nos últimos tempos, passaram a exercer um papel estratégico na manutenção da ordem social e econômica em todo o mundo globalizado. Na prática, converteram-se em um foco particular de poder não eleito pelo povo, assim como ocorreu também com os grandes meios de comunicação. Daí a generalização de uma a expressão – “ditadura do mercado financeiro” – que bem representa esse fenômeno de nossos tempos.
O processo de fusão e concentração nesse ramo tão especial da economia – seja nos níveis local, regional ou mundial – terminou por gerar “criaturas” que escaparam a todo e qualquer controle de seus “criadores”, se é que podemos pensar numa analogia com os mitos do tipo do Frankenstein. A ideia subjacente era de que, também nas finanças, para ser eficiente era necessário ser grande, monstruoso mesmo. E logo em seguida, a realidade começou a pressionar em direção a outra lenda: aquela que ficou conhecida em inglês como too big to fail. Ou seja, grande demais para quebrar. Uma sutil ameaça velada que passou a pairar sobre a cabeça dos governantes, em uma operação coordenada a partir da divulgação dos interesses dos dirigentes dessas megacorporações do mundo financeiro. E assim estaria fechado o círculo vicioso da pseudoperenidade dos hiperoligopólios: foram estimulados pelo próprio poder público a crescer, a ponto de não poderem mais quebrar sob pena de colocar o sistema “em risco”!
A hegemonia político-ideológica conservadora exercida ao longo de três décadas de supremacia da ordem neoliberal contribuía ainda mais para que esse estado de coisas parecesse imutável e inquestionável. As universidades, em sua maior parte, formavam seus alunos já sob esse novo paradigma, com a incorporação dos modelos neoclássicos carregados de fórmulas econométricas e pouca capacidade analítica ou crítica. As organizações multilaterais como FMI, Banco Mundial e similares cumpriam papel estratégico na formulação e implementação dos dogmas do tristemente famoso Consenso de Washington. A grande imprensa não oferecia espaço, normalmente, para outras vozes interpretativas da crise que se anunciava há tempos. No entanto, apesar de todo esse arcabouço em defesa do sistema, o fato é que o modelo, além de injusto e desigual, era inviável no médio e no longo prazos. A História – que não havia chegado a seu fim como previra Fukuyama – encarregou-se de demonstrar a falência do modelo.
Criou-se o mito de que os grandes bancos deveriam ser intocáveis, para o que contavam com a demagogia tão difundida a respeito da suposta necessidade de Bancos Centrais “independentes”. E mais do que isso: eles não poderiam quebrar, pois operavam em áreas vitais para o sucesso da política econômica levada a cabo pelos Estados. Há vários exemplos sintomáticos: i) o financiamento das dívidas públicas por meio das compras de títulos públicos; ii) a presença ativa no mercado cambial (definição da taxa de câmbio), seja comprando ou vendendo moeda estrangeira; iii) o papel essencial na definição da taxa de juros nas operações de crédito e empréstimo na ponta, para empresas e indivíduos; iv) a ação de peso no chamado mercado de derivativos, onde são definidas as grandes tendências especulativas de futuro para todo tipo de papel ou título financeiro em que se queira apostar. Em poucas palavras, o recado era claro: não mexam com os bancos e demais instituições financeiras, pois eles detêm tamanho poder que são capazes de criar instabilidade e provocar ruídos políticos para qualquer que seja o governo de plantão.
A partir dos eventos de 2008 nos Estados Unidos e seus desdobramentos para a Europa e o resto do mundo, a questão bancária ganhou o foco das atenções. Aqueles que eram considerados sólidos e robustos passaram a quebrar em sequência. Frente ao risco da chamada “crise sistêmica” generalizada, os governos foram chamados a adotar uma postura mais pró-ativa, uma vez que as evidências gritavam a respeito da incapacidade do “mercado” em resolver a crise apenas por suas próprias regras de oferta e demanda. Era um simplismo exagerado tratar os mastodontes do mercado financeiro como agentes de um mercado da batatinha dos manuais de microeconomia.
Lá se foram Lehman Brothers, Citibank e tantos outros em uma primeira onda há três anos. A ajuda do governo Obama ao sistema financeiro superou a cifra do US$ 1 trilhão. Agora os holofotes giraram para o espaço europeu e suas instituições bancárias. A bola da vez foi o Banco Dexia, de origem franco-belga-luxemburguesa. Uma operação coordenada pelos governos dos três países e pela União Europeia foi avaliada em garantias concedidas no valor de 90 bilhões de euros para assegurar a solvência da instituição.
A questão que se coloca não é tanto a respeito de se ajudar ou não os bancos, com o intuito de evitar falências. Talvez o ponto mais polêmico esteja associado aos mecanismos adotados e às cifras utilizadas para tanto. Afinal, os bancos operam com recursos de terceiros, inclusive de pequenos empresários, assalariados, trabalhadores, servidores públicos, camponeses e pensionistas. A postura de “deixa quebrar que eu não tenho nada a ver com isso” talvez não seja a mais adequada. Quando um banco quebra, não são os detentores das grandes fortunas que sentem os maiores prejuízos. Na maioria dos casos, eles detêm informação privilegiada e meios suficientes para salvar a própria pele. Já com os pequenos e médios correntistas ocorre exatamente o contrário: como estes não têm muita escolha e são os últimos a saber das dificuldades, acabam por se revelar como os grandes perdedores.
O que não se viu nesse processo de ajuda governamental às instituições financeiras foi uma ação mais incisiva do Estado em tomar assento nos conselhos de administração e mudar a gestão dos bancos. Em geral, os governos estão apenas injetando recursos (públicos!!) nas instituições e deixando a administração privada livre para encontrar as saídas que quiserem para a crise. Apesar da aparência de discurso progressista e preocupado com a ordem social, trata-se na verdade de um suposto keynesianismo completamente às avessas, sem pé nem cabeça. Sim, pois uma coisa é o Estado aumentar seus gastos em áreas que impulsionam a demanda, gerando emprego e renda. Outra, sem nenhum sentido, é promover a elevação dos gastos públicos, dirigindo-os aos caixas dos bancos privados, sem nenhum controle de como será sua gestão.
Caberia aos governos, em tais circunstâncias, condicionar a recuperação das instituições financeiras à alteração da maioria nos órgãos de decisão das mesmas. Na prática, romper com a irresponsabilidade das gestões até a véspera da crise. E com isso adotar medidas importantes e exemplares, tais como: i) a eliminação dos altos salários e bônus pagos aos próprios dirigentes; ii) a separação dos ativos bons e dos ativos podres para evitar a contaminação de uns pelos outros; iii) a identificação das operações fraudulentas e especulativas levadas a cabo pelas gestões anteriores e a transformação desses casos em dossiês para incriminação judicial; entre tantos outros.
Assim, dessa forma, a sociedade poderia identificar as boas razões que justificariam a injeção de recursos orçamentários para recuperar a saúde financeira das instituições e apresentar um horizonte futuro de nova modalidade de gestão dos bancos. Recuperar a faceta pública da atividade de intermediação bancária e financeira. Uma orientação que se descole da ação associada à especulação e que se traduza pela recuperação das funções clássicas de tais entidades: recolher depósitos do grande público e oferecer crédito e empréstimos em condições de responsabilidade e sustentabilidade.
Caso contrário, ficaremos na situação atual, em que a opinião pública condena qualquer tipo de ajuda ao sistema financeiro, pois identifica nele – de forma correta, aliás! – uma verdadeira forma de ditadura que se exerce sobre o conjunto da sociedade. Isso porque se revolta contra a injustiça gritante com que a maioria dos governos vêm tratando seus recursos orçamentários. De um lado, rigor e austeridade nas despesas de natureza social como saúde, educação, previdência e outras. Cortes dolorosos! E de outro lado, a generosidade e a complacência para com a irresponsabilidade dos dirigentes dos bancos, que recebem somas incalculáveis de recursos orçamentários, sem qualquer exigência de contrapartida. Salvar por salvar! Com isso, realmente fica difícil escapar da imagem de dinheiro público sendo jogado fora! Ou melhor, dirigido para os eternos beneficiários da ação do Estado, seja na crise ou no período de bonança.
* Paulo Kliass é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.