O brasileiro sempre teve uma relação mágica com o lixo. Coloca um saquinho na calçada e “puf”, ele desaparece. Some das calçadas e torna-se um tormento para prefeituras e para o meio ambiente.

Durante 20 anos tramitou pelos corredores e gabinetes do Congresso um projeto de lei que dizia coisas simples, absolutamente lógicas, mas que pouca gente queria ver funcionando no dia a dia. Um projeto que estabelece que os fabricantes de produtos e fornecedores de serviços são responsáveis pelo destino dos resíduos que sobram de suas atividades após a compra pelo consumidor, o resíduo pós-consumo: “é responsabilidade do governo” diziam. Com isso, prefeituras de todo o Brasil se viram na contingência de administrar bilhões de toneladas de resíduos gerados por uma economia que só faz crescer. Dinheiro do contribuinte que deveria ir para saúde, escola e para a gestão das cidades e que foi usado, muitas vezes também de forma errada, para dar destinação aos resíduos gerados pela sociedade. No entanto, desde o segundo semestre do ano passado, está em vigor a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que estabelece a “responsabilidade compartilhada” entre empresas, governos e consumidores para a gestão dos resíduos gerados pelas atividades econômicas e nos lares de quase 200 milhões de brasileiros.

Há fóruns sobre o tema pipocando nas cidades, workshops sobre logística reversa, especialistas na TV falando de responsabilidade compartilhada. Tudo para destrinchar o conjunto de leis que instaura uma nova era no tratamento do lixo. Entre os ganhos previstos para o país, está uma economia anual de R$ 8 bilhões em custeio de gás, que poderá ser produzido pela queima de resíduos. A legislação aprovada em agosto de 2010 convoca fabricantes, importadores e distribuidores de produtos, assim como o poder público e os cidadãos, a se adequarem às medidas propostas para entrar em vigor até 2014. Contudo, a lei tem em 2012 um de seus principais impactos na gestão dos resíduos pelas prefeituras. Aquelas que não tiverem até lá um plano de manejo de seus resíduos correm o risco de ficar sem repasse de recursos da União.

“E não vai ter espaço para chororô de prefeito recém-eleito”, explica Samyra Crespo, secretária da Articulação Institucional e Cidadania Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA), que acredita que após as eleições do ano que vem muitos novos prefeitos vão pedir extensão de prazo para a desativação dos lixões, que deve ser feita em 2014. “O governo está disponibilizando todos os mecanismos necessários a essa transição. Os Municípios podem fazer seus planos individualmente ou em sistema de consórcios microrregionais, em que cinco ou seis municípios compartilham custos e tecnologia. Sabemos que a gestão de resíduos sólidos custa caro. Nas cidades de porte médio, ela representa o terceiro item de despesa do Município e, nas pequenas, com menos de 50 mil habitantes, é o primeiro item”, explica a secretária.

Segundo Samyra, a maior dificuldade para que a política decole não é falta de dinheiro, mas sim de projetos capazes de oferecer soluções técnicas competentes. “Precisamos de modelos de gestão bem-sucedidos. Os recursos existem”, garante a gestora do Ministério do Meio Ambiente. Esta é, também, a opinião de seu colega Silvano Silvério da Costa, diretor de Ambiente Urbano da Secretaria de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do MMA, que explica o tamanho do desafio: “Hoje, 88% de todos os resíduos gerados no país vão para os aterros. O ideal é que esse percentual caia para 20%”.

A redução depende da maneira como será desenhado o caminho de volta do produto pós-consumo, a chamada logística reversa. Do ponto de vista técnico, o que é preciso fazer é entender o “ciclo de vida do produto”, ou seja, de uma maneira simples, quais são os materiais usados para sua fabricação, que tipo de embalagem ele utiliza, e o que sobra depois que o consumidor o utiliza. Esse resíduo precisará retornar a um centro de coleta que deverá dar uma destinação adequada, seja sua reutilização, em casos onde isso é possível, como vasilhames retornáveis de bebidas, reciclagem, quando o metrial é utilizado em outro processo industrial e retorna ao ciclo de consumo, como o papel e diversos tipos de metais, compostagem, quando se trata de resíduos orgânicos como restos de alimentos, que podem retornar à produção na forma de adubos, ou aqueles que realmente não têm qualquer utilidade prática e que devem ser destinados a um aterro sanitário.

Silvano da Costa traz na ponta da língua todo o arcabouço regimental em que os grupos de trabalho setoriais se apoiam, mantém prazos e cronogramas sob controle, faz apresentações notáveis em seminários por todo o Brasil. O MMA está empenhado em esclarecer a sociedade e em fornecer subsídios para que o setor produtivo, as prefeituras, os Estados tenham seu Plano de Gerenciamento de Resíduos. A cadeia virtuosa para a diminuição do lixo que a lei quer implantar começa com a redução do consumo – o maior desafio proposto, porque requer mudanças no modelo produtivo e maior reflexão antes de comprar. A não geração de resíduos é o primeiro elo da cadeia sustentável, que se complementa com a redução, a reutilização e a reciclagem. Resíduo, com valor econômico, vira matéria-prima para a indústria de reciclagem, que movimenta outra cadeia produtiva virtuosa, por incluir cooperativas de catadores – ou de agentes ambientais, como eles preferem ser chamados.

Demanda por reciclagem

Como a Política Nacional de Resíduos Sólidos está muito calcada no fortalecimento de cooperativas de catadores, é preciso destinar recursos para a capacitação e organização do setor, que precisa ser melhor remunerado. A intenção da PNRS é desonerar a cadeia dos resíduos onde for possível. “Hoje há dois grupos de recicladores no Brasil: o dos atravessadores, que fica com a melhor parte do negócio, e aqueles que têm plantas modestas. Terá de haver uma transição tecnológica de todo um parque de recicladores, para que esse negócio se torne de fato inclusivo e sustentável”, explica Samyra Crespo. Uma revolução num cenário em que a maioria das empresas acredita que o catador deve ser remunerado apenas com o valor da venda do lixo recolhido.

Segundo especialistas, para que a reciclagem amadureça, é preciso aumentar o mercado por esse tipo de serviço. E a demanda vai crescer à medida que se estruture melhor a coleta seletiva, presente de alguma forma em 62% das metrópoles brasileiras com mais de 500 mil habitantes, mas ausente em 61% dos Municípios com até 50 mil habitantes. Levantamento feito pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), revela que, em 2010, os aterros sanitários receberam 57,6% do total de 54,2 milhões de toneladas de resíduos urbanos coletados no país. “Houve um aumento no volume da coleta de 7,7% em relação a 2009, mas menos de 1% de crescimento na destinação correta. O aumento na geração de resíduos – 15% nos últimos dois anos – segue o aumento de renda, acompanhando o crescimento do PIB e do consumo”, argumenta Carlos Vieira da Silva Filho, diretor executivo da entidade.

O gargalo desse processo ainda está na separação dos resíduos pelos consumidores, antes de descartarem, e na oferta de coleta seletiva, onde cada tipo de produto segue seu caminho para a destinação final. “As empresas que reciclam trabalham com falta de materiais, há mais demanda por matérias-primas de reciclagem do que o sistema de coleta é capaz de suprir”, explica Fernando Von Zuben, diretor de Meio Ambiente da Tetra Pak, empresa líder mundial na fabricação de embalagens de bebidas e produtos alimentícios. A empresa busca fortalecer sua logística reversa apoiando cooperativas de catadores e empresas que utilizem os resíduos pós-consumo de suas embalagens. “Nosso foco em publicidade nos meios de comunicação não é para vender mais, mas para explicar aos consumidores a importância de sua participação para aumentar a reciclagem em nosso país”, explica o executivo. Este é um ponto importante, porque 20% de tudo o que é descartado no Brasil são embalagens, cerca de 25 mil toneladas diárias.

Para Carlos Vieira, da Abrelpe, a criação de uma taxa para a gestão do lixo ajudaria muito a disciplinar o setor. “Assim como medimos o consumo de água e de luz, teremos de mensurar o quanto cada casa gasta de lixo. O investimento per capita do brasileiro em tratamento de resíduos é de R$ 9,95 por mês, o que é pouco e inadequado, quando comparado ao que se gasta com outros serviços públicos, como saúde e saneamento básico, e até privados, como telefonia celular”, compara. Outro especialista da área, André Vilhena, diretor do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre), prevê um salto de qualidade na cadeia de reciclagem e no volume de materiais corretamente destinados. Segundo ele, o modelo brasileiro que reduz o impacto dos materiais no meio ambiente, por meio de uma atividade econômica que gera inclusão social – faz do Brasil uma referência internacional. “Mas ainda falta organizar essa cadeia”, ressalta, esperançoso de que as empresas com visão mais proativa influenciem todos os setores, em favor da rápida implantação da lei. (Envolverde)