O momento que vivemos oferece algumas características que nos estimulam a olhar o que vem por aí na economia. Um desses estímulos me veio da observação recente do presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, quando chamou a atenção para o fato de que o Brasil não deve aproveitar inocentemente o excesso de liquidez que existe no mundo. Esse enorme fluxo de dólares vai ter consequências para a nossa economia ao supervalorizar o real e ampliar as dificuldades para a indústria. E abre também a perspectiva de problemas para bancos e empresas que estão se endividando mais do que seria prudente.
Um olhar sobre o futuro permite antever que alguns setores que estão se endividando alegremente além da conta podem ter de enfrentar apertos sérios se a economia mundial voltar a piorar.
Outro estímulo decorre do entusiasmo que vem despertando além-fronteiras o formidável desempenho do setor agropastoril brasileiro. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou recentemente uma estimativa segundo a qual ao menos 30% do aumento da oferta de alimentos que vai sustentar a demanda da população mundial, de nove bilhões em 2040, deverá ser garantido pela produção brasileira. Será ótimo se isso vier a se realizar, mas não podemos contar com um desenvolvimento tecnológico que ainda não ocorreu.
Tais cálculos são sempre duvidosos. Lembro que, nos anos 70 do último século, era seguro que todos estaríamos mortos de fome hoje, caso as previsões estivessem corretas. Minha impressão é de que não cabem no mundo nove bilhões de pessoas em 2040-2050 com a renda per capita de US$ 20 mil. Seria necessário usar a terra de um outro mundo para produzir comida. Além disso, quem se arrisca a garantir que a China manterá por mais 20 ou 30 anos o dinamismo econômico de hoje e a estrutura política atual, que já dá alguns sinais de fadiga?
É claro que o Brasil não pode aceitar passivamente o modelo de desenvolvimento agromineral-exportador induzido que lhe está sendo imposto pela nova divisão internacional do trabalho: para a China, o fornecimento universal dos bens industrializados, para a Índia, o fornecimento global dos serviços, e, para o Brasil, o de fornecedor residual de produtos agrícolas e minerais.
O setor, que é o maior poupador de mão de obra, será incapaz de dar emprego de boa qualidade a quase 150 milhões de brasileiros com idades entre 15 e 65 anos que viverão em 2030! A aceitação desse modelo coloca em risco o futuro da economia brasileira como instrumento de construção de uma sociedade justa, com baixos índices de desemprego e suficiente emprego de boa qualidade. O que precisamos é voltar nossas atenções para o futuro do setor criador de empregos por excelência, restaurando as condições de isonomia que permitam aos nossos empresários e trabalhadores da indústria consolidar a expansão do mercado interno que vai assegurar os bons cargos a nossos filhos e netos.
É exatamente a criação dessa capacidade que abre as portas para a construção da sociedade que todos desejamos, capaz de dar igualdade de oportunidade para todo cidadão.
Não deixa de ser perturbador como um grande número de pessoas assume um papel conformista diante do que supõem ser uma fatalidade histórica, que é melhor aceitar do que combater. Aquela divisão internacional do trabalho não tem nada de natural ou inexorável. É apenas produto de uma inteligente política do governo chinês, oportunisticamente aceita na Organização Mundial de Comércio pela simbiótica relação com alguns países (em particular os Estados Unidos) e pela complacência de outros, como é o nosso caso.
É claro que o Brasil faz bem em aproveitar o aumento da demanda física de alimentos e minerais por parte da China e as altas de preços estimuladas pela política monetária americana. Como o dólar nominal é a unidade de conta internacional, quando ele perde valor, a contrapartida do mercado é elevar ainda mais os preços das commodities.
Apenas para dar um exemplo: há dez ou 11 anos, um mix de exportação de uma tonelada do Brasil comprava um mix de 0,9 tonelada da importação. Hoje uma tonelada exportada compra 1,4 tonelada importada. Isso correspondeu a um choque de “produtividade”, que permitiu a libertação da economia brasileira da permanente situação de iliquidez externa, cuja última manifestação foi no final do governo FHC, quando tivemos de correr ao FMI para permitir uma eleição tranquila. Mas é uma temeridade e uma grande imprudência supor que isso não vai mudar nos próximos 20 ou 30 anos…
* Delfim Netto é economista, formado pela Universidade de São Paulo e professor de Economia, e foi ministro de Estado e deputado federal.
** Publicado originalmente na coluna do autor, no site da revista Carta Capital.