O gás da Petrobras e a política

José Goldemberg.

Combustíveis fósseis – carvão mineral, petróleo e gás natural – são responsáveis por mais de 80% da energia que é consumida no mundo. O seu uso permite que parcela importante da humanidade tenha um nível de vida sem precedentes na História: mais de dois bilhões de pessoas, um terço de toda a população da Terra, que vive na Europa, na América do Norte, no Japão e nas grandes cidades dos chamados países em desenvolvimento.

Infelizmente, o uso em larga escala, e muitas vezes predatória, desses combustíveis deu origem a problemas que teremos de resolver nas próximas décadas, alguns dos quais parecem insolúveis: em muitos países, as reservas estão se esgotando, tornando o acesso a eles cada vez mais difícil e dando origem a conflitos regionais, até guerras. Além disso, no seu conjunto, esses combustíveis são a principal causa dos problemas ambientais que afligem a população, que vão desde a má qualidade do ar nas grandes cidades até o aquecimento global do planeta.

Dentre todos os combustíveis fósseis, o gás natural é o mais atraente, porque não contém impurezas, como o petróleo e o carvão, pode ser transportado facilmente e usado com melhor eficiência do que os outros. Não é por outra razão que boa parte da eletricidade gerada na Europa provém do gás importado da Rússia.

Ainda assim, as reservas de gás no mundo não são inesgotáveis e devem ser usadas com sabedoria. Sobretudo quando existem alternativas para o seu uso.

Em muitos países, como o Brasil, só para dar um exemplo, a eletricidade pode ser produzida por usinas hidrelétricas. Nesses casos, o gás deve ser reservado para fins mais nobres na indústria e para uso residencial.

Há exemplos de sucesso dessa estratégia, sobretudo no Estado de São Paulo, onde a rede de distribuição de gás aumentou muito nos últimos 25 anos para atender aos consumidores e ao setor produtivo. Alguns setores industriais, que substituíram óleo combustível por gás natural, como o de cerâmica, se beneficiaram com a utilização de tecnologias melhores, que valorizaram os seus produtos e, acima de tudo, são mais limpas do ponto de vista ambiental, dessa forma, por conseguinte, beneficiando toda a população nas localidades onde estão instaladas.

A Petrobras, no passado, nunca teve muita simpatia pelo uso de gás, que era obtido juntamente com o petróleo dos poços que perfurava e durante anos era queimado nas plataformas de exploração flared. O governo paulista teve de lutar muito na década de 1980 para que fosse construído o gasoduto Rio-São Paulo, que permitiu à Companhia de Gás de São Paulo (Comgás) ampliar a sua rede de distribuição. A situação só melhorou com a construção do gasoduto Brasil-Bolívia.

Mas agora a Petrobras parece ter acordado para a importância do gás na matriz energética nacional. E passou ela mesma a utilizar parte do gás que produz para a geração de eletricidade em usinas termoelétricas. Além disso, o setor privado tem demonstrado grande interesse por essa opção, uma vez que gerar eletricidade usando gás é eficiente e as usinas podem ser construídas rapidamente.

A forma como a Empresa de Planejamento Energético (EPE) promove os seus leilões para aumentar a geração de eletricidade levou, contudo, a uma confusão nesse setor.

Nos leilões previstos para dezembro, todas as opções de geração são misturadas (usinas hidrelétricas novas e ampliação das antigas, pequenas centrais hidrelétricas, energia eólica e de bagaço de cana-de-açúcar). O governo não pode ficar impassível diante de “modismos” nesse setor: usinas usando gás não podem ser construídas em qualquer lugar, mas dentro de um plano de distribuição de energia que otimize o sistema.

Não é o que está acontecendo. Foram propostos no leilão, 34 projetos (22 dos quais no Norte e no Nordeste) usando gás, que gerariam 13 milhões de quilowatts (correspondentes a uma usina de Itaipu), dois milhões de quilowatts com hidrelétricas, e apenas 700 mil quilowatts com bagaço de cana. Estas últimas são energias renováveis e não poluentes, que é a direção que devemos seguir. Caso contrário nos tornaremos prisioneiros de um combustível como o gás, que é melhor do que o carvão e o óleo combustível, mas, ainda assim, fóssil – ou seja, não vai durar para sempre. O que se poderia também perguntar é se a instalação de 22 usinas a gás no Norte e no Nordeste, onde o consumo de eletricidade é baixo, é de fato a solução mais racional.

A “corrida” para instalar usinas a gás já está criando problemas para a própria Petrobras, que não consegue garantir esse combustível para todas as propostas, localizadas em 11 Estados, que exigiriam 64 milhões de metros cúbicos por dia, se fossem todas instaladas. No mercado atual, só estão disponíveis 43 milhões de metros cúbicos de gás por dia.

Existe, portanto, um evidente descompasso entre a quantidade de gás que a Petrobras pode oferecer e a demanda que resulta do processo inadequado de leilões da Empresa de Planejamento Energético – o que evidencia a total falta de entrosamento entre dois setores críticos da área energética do governo federal.

O leilão previsto para dezembro está encontrando também outras dificuldades, pelo fato de que as hidrelétricas propostas ainda não receberam licença ambiental e, portanto, dele não poderão participar.

Diante desses problemas, seria oportuna a convocação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão de assessoramento da Presidência da República, no qual têm assento um representante dos Estados e especialistas independentes em energia. O CNPE teve no passado importante papel na definição dos rumos da política energética do país, sendo um foro privilegiado em que pressões corporativistas podem ser mais bem equacionadas.

* José Goldemberg é professor da Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Ciências. Em 2008, recebeu o Prêmio Planeta Azul, considerado o Nobel do Meio Ambiente.

** Publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo e retirado do site EcoD.