Rio de Janeiro, Brasil, 10/6/2011 – Nos poderosos versos da canção “Haiti”, Caetano Veloso e Gilberto Gil expuseram, em 1993, semelhanças entre os dois países nas antípodas do desenvolvimento regional, sintetizadas no verso “O Haiti é aqui”. Um após outro, os versos são imagens cotidianas da exclusão brasileira do negro, tão parecida com a que reina no Haiti, o país mais pobre do continente, e tão distante da vida dos brancos de classe média desta potência sul-americana que está entre as maiores economias do mundo.
“(…) para ver de cima a fila de soldados, quase todos negros/batendo com paus na nuca dos delinquentes negros/de ladrões mulatos e outros quase brancos/tratados como negros/só para mostrar a outros quase negros (e são quase todos negros) e os quase brancos, pobres como negros/com é que se trata os negros, pobres e mulatos/ e os quase brancos, de tão pobres quase negros.”
“Todos gostávamos de cantar essa música”, disse à IPS o secretário-executivo da organização não governamental Viva Rio, Rubem César Fernandes, ao explicar a origem de sua contribuição ao Haiti. A Viva Rio foi fundada em 1993 como resposta à crescente violência urbana do Rio de Janeiro. Sua missão, promover uma cultura de paz e o desenvolvimento de comunidades pobres, ganhou dimensão internacional em 1999, e em 2004 começou a trabalhar no Haiti.
“Agradou a ideia de nossa experiência poder ser útil em outras partes do mundo. Pensamos que, talvez, o Rio de Janeiro possa evoluir, passando de ser vista como uma fonte de problemas para uma fonte de soluções”, disse Fernandes. É que, como diz a canção, “vivemos problemas comuns de desigualdades extremas, de poderes paralelos nos bairros vulneráveis, com carências ambientais no meio urbano pobre”, disse. Há, ainda, uma herança cultural comum afro-americana “que nos aproxima pelos sentimentos e pela maneira de ser”, acrescentou.
Segundo Fernandes, esses fatores, unidos às possibilidades brasileiras e à sua “história de superação”, permitem uma cooperação especial, “combinando recursos e efetividade”. O apoio começou em 2004 como uma consultoria sobre desarmamento, desmobilização e reinserção para a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), aproveitando o que foi aprendido na campanha de controle de armas que a ONG impulsionou no Rio. Em 2007, iniciou uma presença mais ativa no superpovoado bairro de Bel Air, no centro de Porto Príncipe.
A Viva Rio tem orçamento previsto de US$ 10 milhões para o Haiti em 2011 e conta com apoio do governo brasileiro e com financiamento da Noruega, do Canadá, e de agências das Nações Unidas. Um trabalho medular é a construção e revitalização de Bel Air, “um centro que perde valor e se converte em uma fonte de riscos políticos e de violência”, descreveu Fernandes, aplicando experiências adquiridas no bairro carioca da Lapa e no Pelourinho, em Salvador, no Estado da Bahia.
O que foi aprendido em mediações de conflitos serviu de base para forjar acordos de paz entre bandos rivais de Bel Air. “Fizemos um programa de ações integradas que combinam segurança e desenvolvimento e trabalhos psicossociais, dirigidos, sobretudo, a crianças e jovens”, explicou o diretor da Viva Rio. Como nas áreas urbanas pobres brasileiras, a arte é uma ferramenta útil para promover o desenvolvimento pessoal. Por isto, a organização ensina para jovens e crianças de Bel Air capoeira, música e ginástica. “A capoeira cresce com incrível vigor entre os jovens do gueto”, disse Fernandes.
Com o terremoto de 12 de janeiro de 2010, que matou 220 mil pessoas em Porto Príncipe e deixou pelo menos 1,5 milhão sem teto, a ONG precisou adaptar suas ações ao deslocamento da população da capital, com investimentos em Bom Repos e Arcahaie, duas localidades ao Norte da capital. Mas a presença brasileira também é sentida de outras formas.
O Brasil comanda militarmente a Minustah desde junho de 2004. Em março daquele ano, essa força multinacional contava com 12.318 uniformizados, 8.740 soldados e 3.578 policiais de mais de meia centena de países nesta nação de 9,7 milhões de habitantes. Segundo suas autoridades, em 2010, o Brasil destinou US$ 340 milhões para operações de estabilização da Minustah e para contribuir com a reconstrução de infraestrutura, saúde pública, alimentação e saneamento básico.
Nessa ajuda muitas vezes se lança mão de experiências próprias, como o Programa de Restaurantes Escolares, que contempla o treinamento de profissionais haitianos e a instalação de cozinhas nas escolas. As autoridades garantem que nos últimos dois anos entregaram US$ 244 mil a esse programa e foram feitas missões de transferência de tecnologia da Índia para produzir cozinhas alimentadas por lixo sólido.
O projeto, realizado no contexto do Fundo de Desenvolvimento do fórum Ibas (Índia, Brasil, África do Sul) agora se dedica a importar cozinhas indianas para atender as necessidades dos restaurantes escolares e de outros projetos de reciclagem de lixo sólido e saneamento, informou à IPS a assessoria de imprensa da chancelaria brasileira. A política externa do Brasil tenta ocupar um lugar na cooperação internacional, afim com as ambições brasileiras no cenário global, embora as quantias de dinheiro que destina para esse fim ainda sejam muito modestas.
Este tipo de cooperação Sul-Sul busca “estar sempre em linha com as prioridades estabelecidas pelo governo beneficiário”, acrescentou a fonte. As iniciativas do Fundo Ibas surgem de “boas práticas já experimentadas” nos países doadores. O Programa de Restaurantes Escolares haitiano se inspirou no exemplo brasileiro de maior destaque, o Fome Zero, uma ambiciosa estratégia que reuniu múltiplas políticas no governo de Luiz Inácio Lula da Silva e que continua com a presidente Dilma Rousseff.
Um componente do Fome Zero, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, beneficia 47 milhões de estudantes brasileiros e vincula a segurança alimentar com o incentivo à agricultura familiar, explicou à IPS o diretor do escritório do Programa Mundial de Alimentos (PMA) em Bruxelas, Gemmo Lodesani.
Em colaboração com o PMA e o Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), um empréstimo de US$ 5,5 milhões do Brasil foi destinado a um projeto de compra de alimentos (arroz e produtos lácteos) produzidos por cerca de seis mil agricultores familiares haitianos.
Uma brigada brasileira da Via Camponesa, a rede internacional de pequenos agricultores e trabalhadores rurais, foi trabalhar diretamente com os camponeses haitianos em formação política e capacitação técnica de jovens, construção de mais de mil cisternas para armazenar água da chuva, reflorestamento e distribuição de sementes para incentivar a produção agrícola. Envolverde/IPS