Nova Délhi, Índia, 3/7/2013 – Nos subúrbios de Rudraprayag, localidade do Estado indiano de Uttarakhand cujos muitos templos exercem particular magnetismo sobre turistas e peregrinos hindus, os visitantes costumam parar para comer em um popular hotel construído junto ao rio Alakananda. Este é um dos dois principais afluentes do Ganges, a sagrada linha de salvação da Índia que flui desde o monte Gomukh, na enorme geleira Gangotri no Himalaia, reverenciado qual deus. Uma noite de hotel custa barato, e os turistas nacionais e internacionais se aproximam para admirar a imponente paisagem das sacadas voltadas para as montanhas e geleiras que constituem 90% do Estado.
Entretanto, por mais idílico que seja o cenário, este hotel teve um papel involuntário em um dos piores desastres naturais que o Estado já viu. Aconteceu no dia 15 do mês passado, quando inundações repentinas, causadas por um aguaceiro e derretimento nas geleiras, arrasaram com milhares de peregrinos desprevenidos, no que os cientistas agora chamam de “tsunami do Himalaia”. O ministro-chefe do Estado dizia, no dia 27, que poderia haver mais de mil mortos. Na manhã do dia 28 foram encontrados 300 cadáveres debaixo de lama, junto ao maior templo do povoado de Kedarnath.
Incontáveis turistas ficaram presos durante dias em condições deploráveis, até que a Força de Defesa indiana os resgatou por via aérea. Enquanto o governo se esforçava nas operações de resgate, ambientalistas diziam que o desastre não foi simplesmente um fenômeno natural incomum, mas o resultado da construção desenfreada na Terra dos Deuses. Durante anos, uma indústria turística em auge, pela construção ilegal de milhares de pousadas, fez florescer enormes projetos hidrelétricos nos rios, enquanto outras obras de infraestrutura projetadas para abrigar as ondas de visitantes pressionaram indevidamente esta frágil zona ecológica.
Os cientistas também afirmam que a instalação de represas no Ganges, a invasão do leito do rio e as atividades de mineração semeiam o caos na região. “Não houve uma avaliação correta do impacto ambiental ou social para os projetos”, disse à IPS Himanshu Thakkar, coordenador da Rede da Ásia Meridional sobre Represas, Rios e População. Segundo Mallika Bhanot, integrante do Ganges Ahvaan, um fórum público para salvar o rio sagrado, cerca de 244 represas foram construídas ao longo do rio, enquanto outras três acabaram canceladas, depois que um trecho de cem quilômetros, desde a desembocadura de Gomukh até a localidade de Uttarkashi, foi declarado zona ecologicamente sensível, em dezembro de 2012.
“Inclusive a notificação por parte do governo em Nova Délhi bateu de frente com a oposição do governo de Uttarakhand”, observou Bhanot à IPS, apesar de ter sido projetada após minuciosa avaliação da topografia, e com a intenção de preservar vidas humanas em uma área propensa a deslizamentos de terra. Arrepiantes filmagens do desastre registraram prédios de muitos andares desmoronando dentro do rio como um castelo de cartas, enquanto automóveis, pontes e lojas eram arrastados pelo torvelinho. Segundo ativistas, tudo isto poderia ter sido previsto se o governo estadual tivesse respondido aos pedidos de parar a construção nas áreas próximas ao rio.
O Centro para a Ciência e o Meio Ambiente (CSE), com sede em Nova Délhi, também rastreia o vínculo entre o desastre e a maneira como se implementa o desenvolvimento nesta região única. Reconhecendo a importância econômica da geração de energia, a diretora-geral do CSE, Sunita Narain, colocou em dúvida que “o governo central ou o estadual tenham considerado alguma vez o impacto acumulativo dos projetos hidrelétricos sobre os rios e as montanhas”.
“Atualmente, há cerca de 70 projetos construídos (ou para serem construídos) no rio Ganges, que se espera vão gerar cerca de dez mil megawatts”, disse Narain à IPS. Os canais de desvio e as reservas afetarão 80% de Bhagirathi, segundo afluente do Ganges, e 65% do Alakananda, advertiu Narain. Durante a temporada seca, vastos trechos do rio secarão completamente. Essas atividades são muito lucrativas para os construtores, o que torna quase impossível que pequenas organizações ambientalistas sejam ouvidas, opinou Narain.
“Há um forte lobby da construção em Uttarakhand”, apontou Bhanot, acrescentando que os fundos eleitorais de muitos políticos procedem diretamente de projetos hidrelétricos. Há inúmeras alternativas verdes, o que inclui a geração de eletricidade a partir da fumaça emitida pela queima da galhos secos de pinheiros para movimentar turbinas, bem como de outro tipo de biomassa ou minicentrais hidrelétricas, capazes de gerar dois megawatts. Porém, estes planos, menos rentáveis economicamente, não agradam as corporações.
Narain argumentou que este desastre em particular não pode ser atribuído unicamente à mudança climática, mas que é inegável a crescente tendência a eventos meteorológicos extremos, especialmente uma monção mais intensa e imprevisível. Embora admita-se amplamente que a mudança climática é o resultado da queima de combustíveis fósseis e da emissão de quantidades excessivas de dióxido de carbono na atmosfera, está claro que a atual tragédia foi induzida pelos seres humanos, enfatizou Thakkar.
O transbordamento de lagos glaciais nas montanhas, que junto arrastaram pedras, são apenas outro sinal de que se alterou o delicado equilíbrio das forças da natureza, e Uttarakhand está pagando o preço. O turismo pode ser a coluna vertebral da economia de Uttarakhand, mas agora está claro que os visitantes e os peregrinos são muitos: segundo dados do governo, 42,2 milhões de turistas indianos e 227 mil estrangeiros chegaram à região em 2012. Espera-se que esses números dupliquem até 2017, enquanto o Estado se prepara para dar as boas-vindas a 77,7 milhões de viajantes do país e a quase 400 mil do exterior.
Estas visitas não estarão acompanhadas apenas por dejetos humanos e pela contaminação causada pelo transporte, mas também pela infinita construção de hotéis e pela justificativa de mais megaprojetos do que nunca. Especialistas como Thakkar insistem que o setor seja regulado com base em uma adequada avaliação científica da região. Isso não será fácil, já que o turismo atrai renda muita necessária ao Estado. O governo estima que cada turista gasta, em média, US$ 38 por dia, boa parte dos quais vai diretamente para os cofres públicos por meio do pagamento de entradas em locais religiosos.
Embora esta entrada de dinheiro em razão do “turismo religioso e cultural seja uma salvação para muitos, não será sustentável, a menos que todas as atividades de desenvolvimento tenham em conta a vulnerabilidade da área”, advertiu Thakkar. O Himalaia, a cordilheira mais jovem do mundo, já é propensa a erosão, deslizamento de terra e atividades sísmicas. “O desenvolvimento não pode acontecer à custa do meio ambiente em nenhuma região do país, muito menos no Himalaia”, concluiu Narain. Envolverde/IPS