Rafinha bastos alcançou a unanimidade. Depois de proferir na bancada de Custe o Que Custar, dia 19, uma sequência de palavras sobre a gravidez da cantora Wanessa Camargo, “Eu comeria ela e o bebê, não tô nem aí”, todos já sabem que um dos mais destacados integrantes do programa televisivo não é um comediante. Ele exercitaria, em lugar disso, a grosseria simples ou, por muita consideração, um humor bunga-bunga, inspirado no temperamento dos sultões. Talvez, ainda, para inseri-lo na história brasileira, agiria como um latifundiário diante do martírio sexual das escravas negras. E como alguém riria disso, a não ser os próprios coronéis e seus simpatizantes?
O filósofo Henri Bergson deu ainda no século XIX a mais duradoura lição sobre o riso. Bergson dizia que a risada ocorre com efeito restaurador. Ri-se, segundo ele, de quem é inferior a nós, para sanar um equívoco social. Por exemplo, uma mulher que não enxergue a idade avançada, vestindo-se e maquiando-se exageradamente, mereceria a risada, que corrigiria seu comportamento. Wanessa, cantora de sucesso, filha jovem e bonita de um compositor popular vindo de família pobre, e o futuro filho dela, pelo contrário, não seriam exemplos a merecer a correção, especialmente de Rafinha, que o público não reconhece superior a ela ou ao bebê em alguma medida.
“O objetivo da piada não é degradar o ser humano, mas lembrar que ele já é degradado”, ensinou o escritor George Orwell. Ou, como afirmou o humorista Chico Anysio a CartaCapital no ano passado: “O humor deve visar a crítica, não a graça. Ele vai ser engraçado onde puder”. A seguir o que dizem esses autores, Rafinha feriu todas as regras do funcionamento humorístico. Não que esse boxeador verbal seja o único a quem se deva apontar a imprudência, já que, ao dizer tal frase, ele se viu provocado pelo comandante da bancada do programa, Marcelo Tas. Fora este a levar o assunto – a beleza da cantora grávida – à baila de seus comentadores subordinados. O que esperava quando levantou a bola para que Rafinha nela batesse? E, especialmente, por que não o advertiu em público logo que a frase foi proferida? Sobre o episódio, ele declarou à revista Veja São Paulo: “Não gostei, isso não é piada, não se encaixa na categoria humor. É uma deselegância, uma agressão gratuita. Ele foi infeliz. Acho que o CQC precisa superar a adolescência, passar dessa fase de rebeldia sem causa”.
Para o historiador da Universidade de São Paulo Elias Thomé Saliba, autor de um livro clássico sobre o humor brasileiro, Raízes do Riso, “nem humoristas os integrantes do CQC são”, pois “humoristas são criadores de humor”. E eles também não seriam cômicos, “porque não usam a totalidade dos recursos de um cômico, o corpo, os trejeitos lúdicos, com o objetivo de provocar o riso”. O que Rafinha fez, a seu ver, não foi uma piada, antes o “resultado de mera irreverência compulsória, forçada pelo ambiente de público ao vivo, com claque de risadas, que estimula a irrestrição verbal dos comentaristas”. As cenas mais criativas do programa, o historiador acredita, são as pseudoentrevistas com políticos, que parodiam o próprio veículo da imprensa televisiva e atingem os limites do burlesco, “mas que se tornam cada vez mais raras no CQC”.
No dia 3, Rafinha, diminutivo do ator alto de 34 anos, cujo sobrenome dá pano para manga (“bastos” remetendo a basta, entre outras infelizes evocações), desapareceu da atração televisiva. Não que ele já não houvesse dito ao vivo durante esse programa que custa o que custa, 130 mil reais por minuto de inserções comerciais, de 240 mil a 2,4 milhões por merchandising interno, segundo a Folha de S.Paulo, sua intenção de “comer” outras mulheres. Mas somente quando o ex-jogador de futebol Ronaldo Fenômeno mostrou contrariedade com a frase ofensiva, dirigida à esposa de seu sócio Marcus Buaiz, a -coisa ficou impossível de aguentar.
A TV Bandeirantes, onde brilha o CQC, mostrou-se então, pela primeira vez, incomodada com Rafinha, substituindo-o por Monica Iozzi na bancada, uma decisão para amainar os ânimos, mas estranha para quem observa os fatos. Apontado pelo jornal The New York Times -como o mais influente mundialmente no Twitter-, Rafinha já dissera, durante seus shows de pé e na rede social, que a mulher feia deveria se sentir feliz quando estuprada. Embora a “piada” não tivesse sido proferida durante o programa de tevê, o ator, por conta dela, era alvo de uma representação do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo ao -Ministério -Público. Seria, para a emissora, um funcionário cuja conduta deveria ser observada? A Bandeirantes se viu atingida agora após a alegada ingerência de Ronaldo sobre sua cúpula, pois o jogador, além de se recusar a falar ao CQC, a teria ameaçado com a disposição de trabalhar por cortes de anunciantes ao programa.
O colega de bancada de Bastos, outro ator, Marco Luque, que rira da frase no instante em que fora proferida, abaixando a cabeça balouçante e, sobre a testa, encostando uma das mãos, emitiu curiosa nota no dia 2, em que classificou a piada do companheiro de “idiota”. Luque, garoto-propaganda da mesma companhia telefônica que patrocina Ronaldo, teria sua razão para manifestar horror diante de palavras fortes. Danilo Gentili, outra sumidade recém-saída do CQC para talk show próprio na emissora, tuitou e apagou no mesmo 2 de outubro: “Sempre enxerguei algo mais significativo sendo construído por um comediante linchado por falar merda do que por um queridinho por puxar sacos”. A postagem fez a delícia de seguidores como Daniel Lima, que a parodiou no Twitter: “Sempre enxerguei algo mais significativo sendo construído por um comediante linchado por falar sacos do que por um queridinho por puxar merda”.
No dia 2, declarara o Observer, revista dominical do jornal inglês The Guardian, que Gentili representava um momento brasileiro especial, em que os comediantes estariam livres para criticar “o poder”. Um exemplo de raciocínio do apresentador, citado pela publicação, foi desenvolvido durante um show em Brasília, no ano passado: “Votar em Dilma (Rousseff) porque ela foi torturada? Eu pedi para ela ser? Um presidente tem de ser esperto. Se ela foi capturada e torturada, significa que foi uma idiota”. Outra preciosidade já saíra de um comentário seu na rede: “Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. Gentili não mostrou arrependimento pela frase com Dilma, mas, para se remediar junto à comunidade judaica, ele, mais afeito do que Rafinha aos comentários “políticos”, apresentou seu pedido formal de desculpas à Confederação Israelita do Brasil.
Em 1973, Millôr Fernandes, ilustre humorista brasileiro, sofreu um processo instaurado pelo então ministro da Justiça, Armando Falcão, por causa desta frase publicada em O Pasquim: “Jaqueline (Kennedy) nasceu de rabo pra lua e soube usá-lo”. Foi apenas um entre vários exemplos a demonstrar que os humoristas brasileiros, ao contrário do que crê o Observer, têm a tradição de criticar o poder, mesmo em tempos duros. Millôr afrontava a ditadura não em sua representação política, mas moral. Desafiava a censura federal em voga a todo escrito artístico que denegrisse alegados valores da “família brasileira”. Era humor crítico de quem vê oportunismo no fato de a viúva do presidente americano envolver-se repentinamente com um milionário armador grego.
O humor coronelístico de Rafinha Bastos, fundado no pensamento colonial escravista do Brasil, um país, portanto, de história politicamente incorreta, sem a necessidade de que os humoristas preguem agora a incorreção, não o leva a agir assim. Chico Anysio, assim como Jô Soares, sempre proferiu piadas sexistas, machistas e misóginas, mas, como lembra o historiador Saliba, quase sempre encarnando outros personagens, como oligarcas e nhonhôs: “Os preconceitos estavam lá, todos, alguns em toda a sua crueza, mas eram reversíveis, mudavam de lado a todo o momento, os papéis eram trocados, retomando o universo do burlesco”.
Depois de tudo o que houve, Rafinha tentou se explicar pela graça. Não usou de humor autoderrisório, praticado por mestres da stand-up comedy como George Carlin, incansável ao ridicularizar, entre outros, o fundamentalismo religioso de seu país, os Estados Unidos. Pelo contrário, o brasileiro reforçou o preconceito ao posar com duas mulheres de biquíni no Twitter, alegando sua felicidade na noite de suspensão do CQC. Em um vídeo, brincou de recusar carnes como baby beef e fraldinha, além de algo “para beber” numa churrascaria. Às perguntas que lhe fez o portal iG sobre o episódio, respondeu com receitas de bolo, evocando, em um processo de inversão, a censura ditatorial brasileira, que obrigava a imprensa a publicar textos culinários em lugar de notícias.
Não se sabe que tempo terá Rafinha para reinventar-se, ele que viu cancelados dois comerciais de que participaria e cinco apresentações pagas, para as quais cobraria até 20 mil reais por duas horas de trabalho. E é pena que, ao contrário de outras mulheres da história (os anos de conservadorismo teriam dificultado a ascensão feminina à condição humorística no Brasil, como acredita Saliba), Wanessa não tenha respondido à grosseria de Rafinha com uma boa piada. Humor de gênero está longe de constituir novidade. Foi praticado em frases como a da ativista Florence Kennedy: “Se homem ficasse grávido, o aborto seria um sacramento”. Ou por Ginger Rogers, exausta de ouvir falar da genialidade- de seu parceiro de foxtrote, Fred Astaire: “Faço tudo o que ele faz, só que de salto alto e andando para trás”.
* Rosane Pavam é jornalista, editora de Cultura de CartaCapital . Autora do livro O Sonho Intacto – Nas Palavras de Ugo Giorgetti e do blog Contos Invisíveis.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.