Rubem Braga levou o biscoito fino da prosa aos milhões de leitores de jornais do Brasil e influenciou gerações de escritores, inclusive as mais novas.
Carlos Drummond de Andrade disse uma vez que elementos típicos da crônica como sensualidade, ternura, tédio, poesia e humor podem ser “manipuláveis por qualquer um”. Mas, quando operados por um escritor como Rubem Braga, “formam um composto que até dispensa assinatura”. Rubem Braga é o cronista brasileiro por excelência, nos temas e na forma.
Nascido no Espírito Santo, passou por Belo Horizonte, Recife e São Paulo, mas achou-se mesmo foi no Rio de Janeiro, onde se juntou aos mineiros Fernando Sabino, Drummond, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende (todos também cronistas), e ao carioca Vinicius de Moraes, nascido no mesmo ano que ele, 1913.
Dos sonetos de Vinicius, Antonio Candido disse que eram a realização do ideal modernista de Oswald e Mário de Andrade de levar o “biscoito fino” das artes para as massas. O mesmo se pode dizer de Rubem Braga, que levou o biscoito fino da prosa aos milhões de leitores de jornais espalhados pelo Brasil com suas crônicas.
Ao longo da vida, Braga evitou associar-se a grupos com intenções literárias mais elaboradas. Fazia questão de dizer que não queria inferir nos rumos da literatura nacional. Fazia literatura sob pressão, como disse Ignácio de Loyola Brandão, explicando o gênero da crônica. Coisa sem importância, dizia, não chegava a ser jornalismo, nem contos.
Braga jamais escreveu romances ou novelas; apenas uns poucos poemas, e muitas crônicas. E foi com elas que mostrou como a irreverência e o impulso de ruptura dos modernos, de Macunaíma a Serafim Ponte Grande, podia se misturar com uma tradição de humor, leveza e lirismo, característica da literatura brasileira, presente em escritores como Machado de Assis e Manuel Bandeira.
Com a utilização de ordem direta, voz ativa, coordenação e vocabulário simples, Rubem Braga mostrou o caminho da simplicidade sonhado pelos modernistas. Não escolheu a ruptura, e sim a lapidação de uma linguagem brasileira: fácil como um verso de Camões que adorava, “a grande dor das coisas que passaram”.
Evolução
Se as crônicas de Rubem Braga fossem publicadas hoje nos jornais diários, o leitor talvez notasse certo idealismo e nostalgia ao ler parágrafos como “sou um homem quieto, o que eu gosto é de ficar num banco sentado, entre moitas, calado, anoitecendo devagar, meio triste, lembrando umas coisas, umas coisas que nem valiam a pena lembrar”. O tempo hoje não é o de lamentações, é de pessoas decididas, proativas. Braga está associado a um lirismo do século passado, aquele capaz de se encantar com um porquinho-da-índia, ou que diz “coisas tão lindas” como queriam Bandeira e Vinicius e, talvez nem fosse escalado a figurar nos grandes jornais.
Mas foi ele quem mostrou os caminhos para outros escritores com projetos literários distintos e talvez impensáveis até então. Entre os herdeiros do velho Braga estão Millôr Fernandes, Sérgio Porto, Clarice Lispector, Moacyr Scliar, Carlos Heitor Cony e Luis Fernando Veríssimo. Clarice revela que um dia ligou para Rubem Braga, preocupada: “Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que eu faço?” Ele respondeu: “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal”.
Das gerações mais novas, influenciou de Mario e Antonio Prata, passando por Xico Sá. Mas foi com Milton Hatoum e Fabrício Corsaletti que a crônica lírica de Braga ganhou novos ares e se modernizou. Hatoum trabalha em um registro mais próximo do conto e explora a relação com o real e o dia a dia, elevando o fato à categoria de ficção. Em seus textos, Hatoum parte do acontecimento para construir uma narrativa típica da ficção. Em geral, do fato é que se delineiam personagens que pensam e agem. Ao final da crônica, o que importa já não é mais o fato originário ou a lembrança inicial do autor, mas sim a evolução dos personagens. Isto é, de certa forma, uma evolução do que fazia Braga, preocupado sempre em manter o texto ao rés do chão, como disse Antonio Candido. Em outras palavras, o correlato objetivo em Hatoum passou a ser um pequeno núcleo ficcional, em vez de elementos físicos e concretos do mundo real.
Mais recentemente ainda, o escritor e poeta paulista Fabrício Corsaletti seguiu a linhagem lírica braguiana já transfigurada por Milton Hatoum. Em suas crônicas, Corsaletti faz também as conexões com o cotidiano simples, com a vida da classe média paulista, a padaria, o livreiro, a caminhada, a rua. Mas aqui, a nostalgia de Braga dá lugar a um aceitar-se em um mundo em que os poderes do autor são mínimos, às vezes nem mesmo suficientes para alterar o gosto musical de um vizinho, ou de se fazer enxergar por outro passante.
Em Corsaletti não há mais a ilusão de ordem e organização do mundo, nem mesmo quando o choque entre o passado e o moderno pode gerar humor. O choque não produz nada a não ser a confirmação de que o ser é soberano, sem nostalgia e sentimentalismos, mas apenas dentro do seu próprio mundo. Esse mundo do cronista não é mais o seu universo privado, o seu apartamento conjugado, os amigos, ou o bar onde se sabe o nome do garçom e do caixa. O mundo é interior, onde a profusão ativa de conexões e associações impede que o niilismo possa se instaurar, mesmo quando, aparentemente, “o pessoal anda muito desorientado”, como diria Braga.
Prosa
Após as grandes guerras do Século 20, o romance brasileiro da época de Braga já começava a abandonar as narrativas de iluminação, os grandes temas, as ideias de salvação moral, espiritual ou simplesmente amorosa. Só muitos anos depois é que a crônica brasileira o acompanha. Mas, ao contrário do que aconteceu nos romances, o abandono do sonho de elevação e salvação pelos cronistas não cedeu espaço a um niilismo oco e sem beira. Virou antes a narrativa de pequenas epifanias que nada resolvem, para nada servem, não estão dentro de nenhuma ordem e não operam em nenhum sentido superior. São narrativas de transparência. É o que é, sem que isso tenha de significar nada além.
Braga fazia do choque entre o mundo exterior e o interno seu motor nostálgico que justificava o movimento de busca na natureza e no passado por um sentido na vida (é dele a frase: “Devo confessar preliminarmente que, entre um conde e um passarinho, prefiro um passarinho”). Em muitos dos seus textos, tratou do jardim suspenso de sua cobertura em Ipanema, de momentos da infância, e da passagem do tempo, como na crônica de 1980 em que diz a Vinicius: “É a primeira- primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação”.
O escritor capixaba ajudou a enxugar a língua portuguesa falada no Brasil, a limitar aquilo que é conhecido como o mínimo léxico comum, o conjunto de palavras necessárias para nos comunicarmos. O léxico de Braga é uma mochila de escoteiros com apenas os termos essenciais. Nele está o mínimo para que sigamos vivos, atentos e suscetíveis às pequenas epifanias e maravilhas de um mundo que, apesar dos arroubos da tecnologia, globalização e sonhos interplanetários, ainda é pequeno, lento e enigmático, e onde se escondem, ao mesmo tempo, todas as grandezas.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.