Lisboa, Portugal, 15/3/2012 – A mortalidade em Portugal no inverno que está por terminar registra um crescimento alarmante, muito superior à média habitual para esta época do ano, que especialistas atribuem à crise socioeconômica do país. A fatura mais alta está sendo paga pelas pessoas mais idosas de poucos recursos, segundo os especialistas ouvidos pela IPS. A Direção Geral de Saúde (DGS) informou que em fevereiro morreram 11.600 pessoas, 1.600 a mais do que a média do mesmo mês em anos anteriores. A maior parte das vítimas é de pessoas com mais de 75 anos.
A imensa maioria dos especialistas em saúde pública associa o inédito registro de mortes à crise econômica, que obrigou o Estado a aplicar medidas draconianas de economia no gasto público, impostas pela troika de credores internacionais. O acesso gratuito aos serviços de saúde do Estado, um dos grandes êxitos da revolução democrática de 25 de abril de 1974, começou sua longa marcha para a extinção. Por exigência da troika interventora, formada por Fundo Monetário Internacional (FMI), União Europeia (UE) e Banco Central Europeu (BCE), a saúde não pode continuar sendo uma “dádiva” do Estado para os cidadãos. Essa tese não leva em conta que o sistema público de saúde é pago pelos impostos da população portuguesa.
As interpretações sobre as mortes estão divididas. A DGS afirmou no dia 2 que o número elevado de fevereiro foi resultado de frio e doenças próprias da temporada. Contudo, muitos médicos também apontam os parcos ou inexistentes recursos econômicos de uma crescente quantidade de cidadãos que lhes impedem de ter uma alimentação e um cuidado sanitário adequados.
Ana Filgueiras, presidente da organização não governamental Cidadãos do Mundo, onde coordena o “programa interajuda entre mais velhos e mais jovens”, falou sobre a situação à IPS. “O que explica o aumento significativo de mortes precoces é uma conjugação perversa de fatores que, apesar de não serem novos, surgiram simultaneamente e de forma inesperada para os mais velhos e, sobretudo, para os mais pobres”, afirmou.
Portugal é um país “com grandes regiões desérticas de presença humana em idade produtiva, que mantém isolados os mais velhos, especialmente os mais pobres deles, em uma condição de sobrevivência básica e de escasso acesso aos serviços de saúde”, explicou Filgueiras. Em um inverno que foi inusitadamente gélido e sem chuva, “juntaram-se as condições que agravam problemas respiratórios, que afetam a particularmente vulnerável população mais idosa, vítima este ano de sérias limitações econômicas que a impede de aquecer minimamente suas casas”, acrescentou.
Filgueiras não aceita a justificativa do governo quando identifica a gripe para explicar o aumento incomum de mortes. “Este ano houve menos casos de gripe, principalmente do tipo viral agressiva, como em anos recentes aconteceu com a gripe A”, contestou a ativista. Tudo indica que “as dificuldades reais causadas pela atual crise são o que impede os idosos mais pobres de pagar transporte, taxas e remédios para cuidar de sua saúde. É, certamente, nesta conjugação de fatores que reside a origem das mortes dos mais velhos”, concluiu a presidente da Cidadãos do Mundo.
As interpretações de Filgueiras foram compartilhadas pelo médico Jaime Teixeira Mendes, membro da direção do Hospital Santa Maria, o maior do país. “As mudanças meteorológicas derivadas da onda de frio e a epidemia de gripe em nosso país, sem dúvida, são responsáveis pela maior mortalidade no último mês”, disse à IPS. Entretanto, estes elementos, sozinhos, “não justificam os números, porque houve anos em que o registro de casos de gripe foi semelhante, mas com a diferença de que agora há vacinas em quantidade suficiente e este ano havia um número maior de pessoas vacinadas”.
Mendes citou um estudo da Organização Mundial da Saúde “indicando a existência de uma relação provada cientificamente entre as condições socioeconômicas de uma população e sua saúde”. As medidas de austeridade implantadas em Portugal “são as responsáveis pela deficiente nutrição, por causa da comida mais cara, das más condições de moradia, e das casas mal aquecidas porque a eletricidade está mais cara”, alertou o médico. A isto se somam “as dificuldades de acesso aos serviços de saúde pelo aumento das taxas e do transporte, razões mais que provadas por especialistas em saúde pública como causas de maior mortalidade entre idosos”, ressaltou.
“Ou tem dinheiro para comer ou para remédios”, repetiram muitos pacientes de idade avançada em uma reportagem do dia 3 deste mês no jornal O Correio da Manhã, em uma frase que sintetiza a situação dos portugueses mais pobres. Desde o começo deste mês, o jornal lisboeta Público dedica várias páginas a reportagens sobre a precária situação dos mais pobres, uma categoria que em Portugal atinge um quarto dos 10,7 milhões de habitantes.
Do total de habitantes, o grupo dos maiores de 65 anos representa 18% da população, enquanto os menores de 14 amos somam 16,2, segundo dados oficiais. A expectativa de vida é de 78,5 anos. A ênfase foi dada aos idosos, realizando várias entrevistas com médicos especialistas que coincidiram em relacionar a alta da mortalidade com a crise e as medidas de redução do gasto público em saúde exigido por FMI, UE e BCE.
Mário Jorge Santos, presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública (AMSP), afirmou que o aumento progressivo da mortalidade de pessoas com mais idade também tem explicação na alta brutal dos preços da eletricidade e do gás. Os mais velhos, mais vulneráveis ao frio, decidiram economizar ao máximo suas exíguas aposentadorias, mantendo suas casas sem calefação.
Segundo Santos, a pobreza afeta os picos de mortalidade, “seja por obstaculizar o acesso a saúde, seja por não permitir que as pessoas se abriguem adequadamente”. O médico considera que o aumento progressivo da mortalidade em Portugal reflete, de certa forma, a relação entre “a redução da renda das famílias e o aumento das tarifas para os usuários’, que condicionam o acesso aos cuidados de saúde.
A AMSP afirma que o aumento das tarifas dos hospitais durante um período em que pioram as condições econômicas das famílias se traduz em uma carga para a assistência sanitária e, em consequência, no aumento da mortalidade. Francisco Vieira, comentarista do jornal Notícias Ribeirinhas, deplorou o fato de que muitas pessoas “não levam uma vida digna, não contam com cuidados de saúde eficazes, não se alimentam convenientemente, não aquecem suas casas, nem se abrigam como deveriam, não viajam, não convivem, não sorriem, não têm esperança, um conjunto que pode causar a morte. Alguém duvida?”. Envolverde/IPS