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O lado B das revoltas árabes

Protesto amazih na Cabilia argelina. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Protesto amazih na Cabilia argelina. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Girkê Legê, Síria, 2/7/2013 – Apesar de unirem-se aos levantes em seus respectivos países, curdos da Síria e berberes da Líbia continuam buscando reconhecimento no cenário da Primavera Árabe. Logo que os soldados do regime líbio de Muammar Gadafi abandonaram a região, empurrados pelos rebeldes, e já meia centena de crianças amazighs cantavam em sua língua proibida durante décadas na aldeia de Yefren, 110 quilômetros ao sul de Trípoli. Voluntários entusiastas difundiam programas de rádio e publicavam jornais e revistas em tamazight, idioma que também ensinavam aos menores.

Era o início de junho de 2011, ainda faltavam menos de três meses para Trípoli cair em mãos rebeldes e cinco para se declarar o final oficial da guerra e Gadafi ser assassinado, mas os amazighs da Líbia pareciam impacientes para recuperar o tempo perdido durante os mais de 40 anos de regime opressor. Este mês completam-se dois anos da criação da primeira escola amazigh da Líbia. Também chamados berberes, os amazighs são habitantes autóctones do norte da África e sua população atual se estende do Marrocos até a margem ocidental do rio Nilo, no Egito.

As tribos tuaregues do interior do deserto do Saara também compartilham uma língua e origem comuns. A chegada dos árabes à região, no século 7, deu início a uma progressiva arabização do outrora povo dominante, um processo de assimilação que se acelerou na Líbia durante o mandato de Gadafi (1969-2011).

Mazigh Buzakhar, intelectual e fundador do Tira, um coletivo para a língua e cultura amazigh, resume o que acontecia: “Os presos políticos eram executados ou presos por toda a vida por escreverem algumas linhas em nossa língua, após serem acusados de sedição e separatismo ou de espionar para Israel”, acrescentando que “a isso se soma a quase total destruição de nosso patrimônio arqueológico e a execução ou o desterro de nossos imãs, já que nossa corrente moderada do Islã, o ibadismo, também era um símbolo de identidade amazigh”.

“Era a multiplicação por zero sob um regime árabe-islâmico”, explicou Buzakhar, que também conheceu a prisão de Gadafi, depois que foi confiscada a biblioteca que tinha em casa, completada “livro a livro, frequentemente, de forma clandestina”, contou. Fathi Ben Khalifa é outro reconhecido berbere dissidente da Líbia. Passou 16 anos no Marrocos, até que fugiu para a Holanda devido às pressões de Gadafi sobre Rabat. Desde 2011, preside o Congresso Mundial Amazigh, fundado em 1995 e que engloba organizações de todo o norte da África para a defesa e a promoção da cultura e da identidade desse povo.

Também foi membro do Conselho Nacional de Transição (CNT) líbio, o governo paralelo formado por líderes opositores a Gadafi. No entanto, sua participação neste caso chegou ao fim antes mesmo de terminar a guerra. “Em agosto de 2011, decidimos cortar relações com o CNT, após comprovar que não tinha intenção de reconhecer nossos direitos na futura Constituição líbia”, explicou Khalifa à IPS, por telefone. E tudo aponta para que tal reconhecimento tardará em chegar, porque a Líbia ainda está longe de redigir sua Constituição.

Khalifa não dissimula seu mal-estar. “O problema é que ninguém tem uma ideia clara sobre qual é a Constituição que o povo líbio busca, por isso nem mesmo se constituiu a comissão encarregada de redigi-la”, pontuou. “Continuamos insistindo que o objetivo final da revolução deve ser uma Constituição moderna e laica, porém as disputas locais tribais prevalecem em muitas partes da Líbia”, ressaltou.

Novos problemas parecem somar-se aos ainda não solucionados na difícil e tortuosa transição Líbia. Entretanto, isso não parece atenuar a febril atividade amazigh. “Seguimos adiante. Nossa língua, o tamazight, já é ensinada em nossas escolas e não estamos dispostos a perder todo este tempo apenas porque uma parte do povo líbio não está preparada. Decidimos não esperar”, enfatizou Khalifa. O despertar amazigh tinha sua réplica nas regiões curdas da Síria, nos meses após o levante em março de 2011.

Enquanto os berberes recuperavam na Líbia seu milenar alfabeto, o tifinagh, os curdos da Síria aprendiam latim para escrever em kurmanji, a variante do curdo que compartilham com seus irmãos na Turquia. Partidos políticos, escolas e jornais em língua curda se multiplicavam em zonas cuja segurança cabia a voluntários locais. A bandeira tricolor curda (vermelho, verde, amarelo) em postos de controle, ruas e bazares apontava para uma revolução cultural, social e política, paralela à do resto da Síria.

Neste país vivem três milhões dos 40 milhões de curdos distribuídos nas fronteiras deste país, no Iraque, Irã e Turquia. Os curdos da Síria igualam em número os alauitas, o grupo etno-religioso ao qual pertence o presidente Bashar al Assad. A chegada do partido Baath ao poder, em 1963, os condenou a brutais políticas de assimilação sob as quais muitos foram deportados ou privados de cidadania, e tiveram sua língua proibida. “Acredite, ou não, a nossa é única região do país onde se respeita a vontade dos sírios à margem de ingerências estrangeiras”, disse à IPS o líder do Partido da União Democrática (PYD), Salih Muslim.

Com um ideário compartilhado com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PCC), o PYD é a agrupação política dominante entre os curdos da Síria, para os quais busca um reconhecimento constitucional parelho ao reivindicado pelos amazighs na Líbia. Entretanto, Muslim reconhece que não será fácil, porque “tanto insurgentes quanto Assad perpetuam uma mentalidade árabe-islâmica arraigada na região há séculos”. Khalifa concorda “100%” com a leitura do líder curdo. “Como posso fazer parte de um país que não reconhece minha existência?”, questionou.

Esta situação não acontece apenas na Síria e na Líbia. O mesmo ocorre com cabiles na Argélia, tuaregues em Mali, coptos no Egito, assírios e turcomanos no Iraque. Todos eles são a viva prova de que, apesar da conjuntura histórica, tanto o Oriente Médio quanto o norte da África continuam sendo regiões formadas por um colorido mosaico de povos, que hoje reclamam seus direitos. Envolverde/IPS