O “lead”, técnica de García Márquez

 

Joaquín Roy. Foto: Cortesia do autor
Joaquín Roy. Foto: Cortesia do autor

Miami, Estados Unidos, abril/2014 – “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía recordaria aquela tarde remota em que seu pai o levou a conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de 20 casas de barro e cana-brava construídas à margem de um rio de águas diáfanas, que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e grandes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nomes. E para mencioná-las era preciso apontá-las com o dedo.”

Os leitores experientes sabem que essas linhas são as introdutórias de Cem Anos de Solidão.

Com tais amostras de anzóis literários, a tentação de deixar a leitura de páginas de Gabriel García Márquez acaba inexoravelmente em fracasso. Milhões tentaram, sem êxito. O leitor fica preso e quer mais fatos e detalhes.

É o resultado da adaptação enriquecida e personalíssima de Gabo de um mecanismo de redação de arquitetura aparentemente muito elementar. A tradição reconhece sua origem no jornalismo norte-americano: o lead, a abertura de uma matéria.

A armadilha pela qual o leitor é capturado é a estrutura e o conteúdo do parágrafo inicial, repetido e modificado de formas diversas em outros capítulos desse escrito. Qualquer de seus livros tem passagens semelhantes.

Do ponto de vista puramente redacional, consiste na localização, no início de um artigo essencialmente jornalístico, dos fatos básicos da matéria.

Na estrutura da “pirâmide invertida”, a combinação de “o que”, “quem”, “quando”, “onde”, “como” e (talvez) “por que”, é o aperitivo com que o autor tenta prender a atenção do leitor. No resto do texto, o autor vai completando os detalhes satisfazendo com doses calculadas os diversos desejos ou expectativas do leitor.

A variante do lead ortodoxo coloca os detalhes secundários no interior da narração em sentido contrário à sua importância, deixando como opção suprema a decisão individual de não terminar a leitura. Uma técnica alternativa precisamente opta por reservar o golpe de efeito para o final. García Márquez usa diversas modalidades.

Segundo confissões do próprio García Márquez, contra as expectativas de sua família, abandonou os estudos de direito para se dedicar ao jornalismo, que praticou em numerosos subgêneros.

Contra o que se pudesse interpretar de um autor que ficou marcado com o rótulo do “realismo mágico”, sua prosa é um exemplo muito distante da verbosidade barroca e da complexidade sintática. Sua simplicidade gramatical e a escolha léxica surpreendem precisamente pela neutralidade com que são oferecidas.

A aprendizagem dessa personalíssima técnica é o resultado da passagem de García Márquez por diversos jornais colombianos (El Heraldo, de Barranquilla, e El Espectador, de Bogotá, entre outros), seu trabalho como correspondente em vários países europeus e a fundação e o desenvolvimento da agência Prensa Latina.

Sua prova é o resultado de rechaçar a tônica grandiloquente de ar de discurso populista e o obscurantismo dos textos editoriais.

Uma possível origem dessa contundente simplicidade, embora seja difícil demonstrar e não haja confissões explícitas do próprio autor a respeito, é a profissão de seu pai, Gabriel Eligio García.

Telegrafista de Aracataca (transformada literalmente em Macondo), a aldeia natal, seu trabalho diário deve ter atraído a atenção de seu filho. A natureza rígida dos textos que devia transmitir, com uma economia de palavras ditada pela necessidade de baratear os custos e os esforços técnicos, pode ter impactado o futuro escritor.

Porém, a história do jornalismo não se coloca de acordo em assumir se a técnica do lead tem precisamente sua origem nessa tecnologia primitiva da comunicação no século 19. Outra interpretação situa seu desenvolvimento em uma época mais tardia, quando começa a primar o jornalismo puramente informativo, deixando de lado o sustentado no comentário e na opinião ensaísta.

De maior influxo literário deve ser a admiração de Gabo pelos escritores norte-americanos, entre eles se destacava Ernest Hemingway. O autor de Adeus às Armas é conhecido por ter confessado como aprendeu a escrever. Humildemente pagava sua dívida com o Manual de Estilo da agência Associated Press (AP).

Esse código de redação, imposto com rigor aos jornalistas, reunia uma série de normas que se resumiam em umas poucas lógicas técnicas: orações curtas, construções afirmativas, abstenção de frases subordinadas, palavras escolhidas corretamente e órfãs de conotações obscuras.

Além disso, a servidão financeira presidia esses condicionamentos literários: os textos longos eram mais caros de se transmitir do que os curtos.

É paradoxal e muito significativo que o mesmo autor que teve uma relação tormentosa com os Estados Unidos, onde foi vetado durante anos por sua colaboração com o castrismo, tenha assim oferecido uma homenagem a algumas mostras da cultura desse país.

O jornalismo e a literatura, refletidos em suas técnicas profissionais e a obra de seus mestres novelistas se revelam como as dimensões essenciais de uma tradição muito próxima das inclinações de Gabo. Envolverde/IPS

* Joaquín Roy é catedrático Jean Monnet e diretor do Centro da União Europeia da Universidade de Miami ([email protected]).