Miami, Estados Unidos, maio/2011 – O escritor argentino Ernesto Sábato morreu, perto de completar cem anos, enquanto William e Kate, agora duques de Cambridge, se casavam em Westminster e celebravam em Buckingham. Dois bilhões de telespectadores se fascinavam com os britânicos, que respiravam aliviados a sobrevivência da monarquia e a solidez do próprio Reino Unido. Sábato faleceu ainda morando em uma Buenos Aires rude e uma Argentina dividida. Londres se aferra com êxito à história.
A obra novelística do autor de “Sobre Heróis e Tumbas” é notável. Mas sua produção ensaística supera em excelência, uma apreciação que no fundo não agradava ao autor, grosseiro de extrema amabilidade quando lhe solicitavam entrevistas repetitivas. Um café no centro de Buenos Aires ou em sua casa de Santos Lugares era uma experiência que ficava gravada na memória do visitante. As apreciações com que brindava a visita faziam efeito dias e meses depois.
Dois aspectos de seu trabalho em prosa se destacam: sua apreciação dura e sincera da cultura argentina e seu estilo pessoal exercido com técnica de estilete em sua escrita. Reler qualquer de seus ensaios tem um impacto perene, embora os temas tratados se refiram a acontecimentos, detalhes ou épocas de décadas passadas. Parecem apreciações sobre a atualidade nos dois continentes (Europa e América), reproduzíveis nas páginas de colaborações dos grandes jornais, sem que o leitor se dê conta.
Contra o que frequentemente se acredita na obra em prosa de grandes escritores, novelistas ou poetas, seus ensaios são um fiel exemplo do que se conhece como “estilo sem estilo”. Não sobram palavras; não se usa fórmulas de ordem sintática que confundem o leitor; não se escolhe termos que obrigam a recorrer ao dicionário. É como se Sábato estivesse obrigado a exercer a economia de meios, como se estivesse redigindo um telegrama, pago de acordo com o número de palavras. Embora, talvez, ele não o reconhecesse, os modelos de Hemingway e García Márquez na construção de seus textos narrativos se encaixam no mesmo universo. Frases curtas, declarativas, desprovidas de ambiguidade, segundo confessou o autor de “`Por Quem os Sinos Dobram”. Era a aplicação da ditadura do manual de estilo da Associated Press imposto aos seus correspondentes.
Em Heterodoxia, uma coleção de máximas e reflexões, Sábato revela sua oculta técnica e modelo ao recordar a classe machadiana de Juan de Mairena: Vá ao quadro-negro e escreva: “os ventos consuetudinários que acontecem na rua”… Vá colocando isso em linguagem poética… O aluno, depois de meditar, escreve: “o que se passa na rua”. Mairena: “não está mal”.
Mas esta economia de linguagem não impedia sua excelência literária. Qualquer parágrafo de seus ensaios é suscetível de ser lido cortando a discrição, segundo a intuição do leitor, as orações em “versos”. Detecta-se uma rima secreta, que o crítico argentino de Harvard, Anderson Imbert, chamou de “ritmo da prosa”.
Este viés é mais usado quando trata de temas essenciais do que considera como a identidade argentina. Vejamos este exemplo em um clássico intitulado “Sobre o Acento Metafísico na Literatura Argentina”, inserido em uma compilação de ampla circulação na década de 1970, “A cultura na encruzilhada nacional”:
“Estamos no fim de uma civilização/e em um de seus confins,/submetidos a essa dupla quebra,/no tempo e no espaço./Somos destinados/a uma experiência duplamente dramática,/perplexos e angustiados,/somos atores de uma obscura tragédia/sem ter por trás o apoio/de uma antiga cultura indígena/e tampouco sem poder reivindicar do todo/a tradição da Europa./E como se ainda fosse pouco,/não havíamos terminado de construir e definir/uma pátria/quando o mundo que nos dera origem/começou a ruir./O que significa que se esse mundo é um caos,/nós o somos elevados à segunda potência.”
Sábato foi a figura mais destacada de toda uma escola, não de uma geração, de ensaístas cujo tema central foi o contexto argentino de justamente antes da crise econômica dos anos 1930 e suas consequências. Na Argentina, sua origem foi o princípio da queda do poder mundial do império britânico que agora se sustenta em Londres. Ao se formar a economia argentina como uma sucursal inglesa, o efeito da crise foi imponente. Coincidiu com o ceticismo nas camadas de imigrantes que se agravaram no sentimento de desarraigamento (palavra-chave) e o surgimento da centralidade dos “descamisados”, presa do populismo.
Em “O Escritor e Seus Fantasmas”, Sábato é contundente: “Nosso homem é de contornos, indecisos, complexos, variáveis, caóticos”. Então oferece uma imagem original, cruel, certeira que deu a volta ao mundo: “Isto é como um acampamento em meio a um cataclismo universal”. É um fiel retrato da Argentina atual (rude à Vargas Llosa) e seu entorno universal (Norte da África), menos na miragem de Londres, claro. Envolverde/IPS
* Joaquín Roy é autor dos livros sobre a teoria e a prática do ensaio “Jornalismo e Literatura” e “Jornalismo e Ensaio: de Colombo ao Boom”.