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O livre arbítrio é controlado com blindados na Crimeia

Um veículo blindado russo em uma rua de Simferopol, capital da Crimeia. Foto: Zack Baddorf/IPS
Um veículo blindado russo em uma rua de Simferopol, capital da Crimeia. Foto: Zack Baddorf/IPS

 

Simferopol, Crimeia, 20/3/2014 – O deslocamento militar e de armas na península ucraniana da Crimeia torna inevitável a pergunta: o quanto estavam livres os cidadãos que votaram no referendo do dia 16 sobre o status desta república autônoma? Aproximadamente 97% dos votantes se pronunciaram a favor de ficar independente da Ucrânia e unir-se à Rússia, e a participação eleitoral foi de 80%, segundo as autoridades locais.

“Deixando de lado a questão da legalidade do referendo, a situação no terreno ajuda pouco a livre expressão da vontade pessoal”, apontou à IPS a diretora-adjunta da organização Human Rights Watch (HRW), Anna Neistat, em visita à Crimeia. “Com veículos blindados sem identificação circulando pelas ruas, rodeados por homens totalmente armados e sob uma incessante propaganda pró-russa, os habitantes da Crimeia sentiram que a decisão já estava tomada”, afirmou.

Os blindados russos estacionaram em todas as esquinas de Simferopol, a capital da Crimeia. As tropas de Moscou cercaram e tomaram as bases militares ucranianas em toda a península. Grupos paramilitares de cossacos (um povo eslavo), trazidos da Rússia, andavam pelas ruas desde vários dias antes do referendo. Junto com as milícias locais “de autodefesa”, que usam braçadeiras vermelhas, atacaram jornalistas estrangeiros e locais.

O repórter fotográfico eslovaco Jan Husar foi vítima de um desses ataques. No dia 12 deste mês, ele estava no aeroporto de Simferopol fotografando insurgentes que impediam a aterrissagem dos voos procedentes de Kiev e Istambul. Só permitiam a aterrissagem de aviões vindos de Moscou. Fora do terminal aéreo, Husar fotografou um carro que passava. “Em um automóvel estavam alguns homens que saltaram do veículo. Um tinha um revólver”, contou o repórter, que acredita que eram do serviço secreto russo.

Eles pediram seus documentos. Um grupo de cossacos começou a cercá-lo. Os homens não identificados do carro foram embora após se assegurarem que havia eliminado a foto do veículo, mas os cossacos ficaram. Então, começaram a empurrá-lo para um matagal próximo. Só depois que um habitante do lugar interveio deixaram que fosse embora, mas ficaram com os cartões de memória de sua câmera.

“Antes do referendo, as autoridades não pouparam esforços para controlar a informação e silenciar as críticas”, ressaltou Neistat. As unidades que atacam jornalistas “atuam totalmente fora da lei, sem uma cadeia de comando clara e sem responsabilidade”, afirmou. Husar acrescentou: “Imagine que você é um dirigente político que quer se manifestar, pode se meter em uma situação realmente perigosa”. Isso é o que aconteceu com vários ativistas da Crimeia.

Viktor Neganov, líder do movimento Euromaidan na cidade de Sebastopol, na Crimeia, liderou cerca de cem ucranianos de sua localidade em protestos contra a corrupção. Em uma das manifestações, enfrentaram uma multidão pró-russa. Alguns atacaram Neganov e o nocautearam. “Começaram a me bater e tentei me proteger, mas eram muitos, cerca de dez ou 20 de todo lado”, destacou à IPS. Segundo ele, muitas manifestações foram orquestradas por espiões e militares russos infiltrados. Neganov deixou a Crimeia após receber ameaças.

Porém, muitos eleitores disseram à IPS que não se preocupam com a ocupação militar russa. “Apoio os soldados russos. Se não houvesse tropas russas, aconteceria o mesmo que em Maidan, em Kiev”, opinou Vladimir Ifirich, que votou pela incorporação da Crimeia à Rússia. A praça de Maidan, na capital ucraniana, foi nos últimos meses o centro de manifestações a favor da aproximação com a União Europeia (UE), daí o nome de Euromaidan que ganharam, depois que o agora deposto presidente ucraniano Viktor Yanukovych se negou a assinar um acordo comercial com o bloco europeu.

Gunadi Blisnky, de 60 anos e que trabalha no serviço de emergência de Simferopol, também não se importa com os militares russos. “Na verdade, não experimentamos nenhum inconveniente com as tropas russas aqui. Outro dia fomos ao teatro, hoje vamos a um concerto. Ou seja, não há absolutamente nenhum problema”, afirmou. A operária da construção Natasha Mamayeva demonstrou a mesma indiferença. “Tudo está calmo. Até agora, as tropas russas não causaram nenhum dano à população local”, pontuou.

No dia 18, tropas russas atacaram uma base militar ucraniana na Crimeia, matando um soldado e ferindo outro. Na cidade portuária de Yalta, foi informado o sequestro de um chefe de inteligência militar exterior da Ucrânia, supostamente por soldados russos. Em um centro de votação em Simferopol, onde tocava a todo volume música de estilo soviético, a funcionária eleitoral Ivana Lubov-Dutriankao afirmou à IPS que o referendo aconteceu de modo livre e limpo. “Tudo está calmo aqui. Por favor, digam a verdade: ninguém obrigou ninguém a votar. Todos são livres para votar como quiserem”, enfatizou.

Contudo, na cidade de Bajchisarai, ao sul de Simferopol, houve quem boicotou o referendo. Ali há maioria de tártaros, um povo turco muçulmano que representa cerca de 14% da população da Crimeia. Por sua história, muitos tártaros desconfiam da Rússia: em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, o líder soviético Josef Stalin os acusou de colaborar com o nazismo e deportou 200 mil para campos de trabalho na Ásia central. Quase 40 mil tártaros morreram na viagem. Então, Moscou povoou a Crimeia com população russa, e os tártaros só puderam regressar à península quando a União Soviética começou a se desintegrar, na década de 1990.

“Se os esforços diplomáticos para resolver a crise fracassarem, obviamente alguns tártaros optarão pela insurgência e uma guerra de guerrilha”, analisou Imiril Mirov, chefe do governo distrital de Bajchisarai. No momento não há sinais de um movimento rebelde tártaro, embora existam informações sobre “autodefesas”. Segundo Mirov, “não temos unidades armadas, nem autodefesas, absolutamente nada”, acrescentando que o principal objetivo é evitar um banho de sangue. Envolverde/IPS