Por Maria Helena Masquetti –
“Qualquer criança me desperta dois sentimentos: ternura pelo que ela é e respeito pelo que ela poderá vir a ser”. Difícil pensar nesta frase tão comprometida e humana atribuída a Luiz de Pasteur, sem visualizar a imagem de uma criança entretida com algum brinquedo ou com a exploração curiosa dos objetos ao seu alcance. Porém, é surpreendente a relutância que ainda persiste, tanto cultural como política, em se proporcionar às crianças seu direito pleno ao brincar.
Aproveitando-se dessa cegueira conveniente, o marketing da adultização precoce reduz o brincar a uma perda de tempo, fidelizando as crianças às telas e convencendo-as a trocar a experiência real pela artificial, a alegria de incluir e compartilhar pelo isolamento do entretenimento virtual. Entre as muitas conseqüências dessa inversão de valores, a própria percepção das crianças vem sendo comprometida. Uma recente pesquisa* evidenciou bem esse risco, apurando que, entre as crianças e adolescentes da cidade de São Paulo, aqueles que realizam tarefas ou brincadeiras individuais, tais como assistir TV, ficar no computador ou mesmo ajudar em casa, percebem a cidade “apenas como um lugar onde morar” enquanto os que se socializam, jogando bola, empinando pipa, entre outros brinquedos, veem a cidade com melhores olhos, sentindo-se parte da comunidade.
A violência em geral e o tráfico de drogas foram os temores mais apontados pelos mesmos jovens que, finalmente, tiveram voz nesta pesquisa. Embora muito precise ser feito para tornar a cidade um lugar ideal para formar bons cidadãos, uma das causas da violência está embaixo do nosso nariz, na conjugação entre uma cidade que além de não oferecer condições seguras para as crianças brincarem, permite que a publicidade ocupe o lugar do brincar, seduzindo-as para comprar.
Nada é mais incompatível com a violência do que crianças brincando livres, criando, descobrindo, rindo, incluindo, compartilhando e tendo a oportunidade de reconhecer os recursos de que dispõem para participar prazerosamente do jogo da vida. Quantos anos mais de estudos e descobertas necessitamos para admitir que o direito ao brincar deveria vir muito antes de qualquer discussão sobre a partir de que idade aprisionar os jovens?
Numa analogia talvez oportuna com a citação que encabeça este texto, um dos inventos mais revolucionários de Pasteur foi a vacina contra a raiva, uma doença física capaz de transformar numa fera temível mesmo o animal mais dócil. No caso da violência que tanto nos assombra, o vírus que a desencadeia costuma estar encubado nos lugares onde a proteção não chega e a esperança não encontra motivos para ficar. A vacina há muito foi descoberta, e um de seus princípios literalmente ativos é o brincar, muito embora, para sua aplicação em massa, ela dependa de alguns componentes ainda raros: solidariedade, participação social e vontade política. Mas se os corações verdadeiramente se unirem para garantir a prioridade absoluta da infância, a ganância irá morrer de raiva e o problema da violência se resolverá também brincando.
* Pesquisa IRBEM Criança e Adolescente, realizada pela Rede Nossa São Paulo, com parceria do Ibope Inteligência e apoio do Instituto Alana e do Instituto C&A.
** Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.