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“O neoliberalismo questiona direitos humanos fundamentais”

Arménio Carlos: “A fome voltou a Portugal”. Foto: Mario Queiroz/IPS

Lisboa, Portugal, 20/2/2013 – “A União Europeia (UE) não deve ser cúmplice de políticas econômicas neoliberais que tratam as pessoas como objetos, atacando benefícios sociais elementares, a ponto de se colocar em xeque a própria Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU)”.

Essa afirmação foi feita por Arménio Carlos, secretário-geral da poderosa Central Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), em entrevista dada à IPS enquanto ajustava detalhes da Jornada Nacional de Ação e Luta, que aconteceu no dia 16 em todo o território continental de Portugal e em seus arquipélagos de Açores e Madeira.

A CGTP anunciou que apresentará queixa contra o Estado português perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT) pela violação de uma série de convenções que protegem a negociação coletiva e a liberdade sindical.

IPS: Estamos diante de uma substancial mudança do sistema que garantia a chamada Europa social?

Arménio Carlos: O que se questiona é um conjunto de pressupostos e princípios do trabalho digno, tal como definido pela OIT. Não se pode brincar com a vida das pessoas, que não são cobaias de laboratórios neoliberais para ensaiar aonde se pode ir, seja em Portugal, Grécia, Espanha ou Irlanda. Nossos países eram vistos como de menor importância, com problemas econômicos e financeiros, mas agora já se vê que a questão não é apenas de portugueses, gregos ou irlandeses. Também afeta a Alemanha, o motor da Europa, que entrou em uma situação de paralisia de sua economia. Isto deve levar os responsáveis da UE a refletirem.

IPS: Como Portugal poderá pagar sua dívida (de 78 bilhões de euros, ou US$ 110 bilhões) contraída perante a troika UE/Fundo Monetário Internacional/Banco Central Europeu (BCE)?

AC: Se a dívida não for renegociada, Portugal não poderá pagar e será colonizado pela via financeira. Renegociar não significa não pagar, mas ter condições de poder pagar. Porém, os próprios credores nos impedem de desenvolver políticas econômicas para cumprirmos esses compromissos. Por exemplo, o BCE ajuda o setor financeiro emprestando dinheiro com juros de 0,7% e, por sua vez, os bancos dão créditos a 8% para o Estado ou as empresas. Por isso o BCE neste momento é um incentivador da especulação financeira. O desemprego continua crescendo em Portugal e já estamos próximos de um milhão de desempregados, o que equivale à cifra recorde de 16,9% da população economicamente ativa, a terceiro maior da UE, atrás de Grécia e Espanha. A recessão econômica se manterá este ano. São dezenas de milhares de empresas que fecham ou entram em falência.

IPS: Este futuro pouco animador faz prever também um aumento da pobreza?

AC: Estão se generalizando a pobreza e a exclusão social, e também estamos diante do retorno da fome em Portugal. Temos milhares de crianças que passam fome e, naturalmente, isso significa que seus pais já passam fome há bastante tempo, devido a esta política neoliberal que está sangrando os portugueses. Além do sofrimento generalizado causado à população, está colocando em risco o futuro do país. É uma política que não resolve, e só acentua os problemas.

IPS: As duas greves gerais e as diversas manifestações de protesto de 2012 contaram com enorme adesão. Esta convocação significa que as reivindicações da CGTP agora vão muito além do estritamente sindical?

AC: Estamos diante de uma redução do poder de compra que afeta milhões de pessoas e ocorre em dois níveis. Primeiro, a inflação sem atualização salarial, o que significa que, em termos médios dos últimos dois anos, os trabalhadores do setor privado perderam mais de 10% de seu poder aquisitivo, enquanto os do setor público perderam 25% e até 30%, em alguns casos. Segundo, temos a implantação do Orçamento Geral do Estado para 2013, que causará nova redução da renda das pessoas, pelo aumento de impostos previsto, que terão um impacto de baixa entre 6% e 7% na renda das famílias. Por isso se pode deduzir que o poder de compra dos trabalhadores continuará em queda livre. Por outro lado, há enormes benefícios fiscais concedidos aos grandes grupos econômicos e financeiros, sem que se verifique um combate real à fraude e à evasão fiscal. É útil saber, também, que estes crimes custam aproximadamente 25% do produto interno bruto. É aí que os problemas devem ser atacados, o que não acontece, porque esse poder econômico-financeiro é praticamente intocável. As duas greves gerais e as grandes manifestações de 2012, bem como os protestos de 2013, constituem um movimento em desenvolvimento acelerado, um momento inédito, no qual a esmagadora maioria dos portugueses pode expressar seu descontentamento e sua indignação e exigir o fim da política da troika.

IPS: E quanto aos direitos trabalhistas?

AC: Aumentou o desequilíbrio das leis trabalhistas entre trabalhadores e patrões, a favor destes últimos. Por exemplo, na redução do valor das horas extras, a facilitação para demitir, a redução do valor das indenizações e da assistência social, assim como o ataque sem precedentes aos contratos coletivos. Estamos falando de uma desregulamentação da legislação trabalhista em favor dos empresários. Neste momento se discute colocar os portugueses em níveis de indenizações miseráveis, para chegar a apenas 12% de um trabalhador irlandês ou alemão, e entre 25% e 30% de um trabalhador espanhol. Além do espiral recessivo, em Portugal também assistimos um espiral de retrocesso em termos de civilização.

IPS: Qual é o limite?

AC: Para um governo com visão neoliberal não há fronteiras. Para eles não existem as pessoas, apenas números e objetivos. No final, um ajuste de contas com a Revolução de Abril (o golpe dos capitães do exército que em 1974 democratizou Portugal), que significou um conjunto de direitos que valorizaram o trabalho e dignificaram as pessoas. O governo (do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho) permanece imutável diante de pais e mães que perdem o emprego e de filhos que têm negado  seu direito ao trabalho, pais dos quais é retirada a proteção social e filhos que são obrigados a emigrar e idosos que já não têm dinheiro para comprar remédios indispensáveis para sua sobrevivência.

IPS: O que a CGTP propõe?

AC: Pensamos que não basta falar sobre crescimento. Só se pode crescer com investimentos, mais produção, melhor distribuição da renda e maior poder de compra. Estes componentes, para nós, são fundamentais para responder ao problema de fundo. Envolverde/IPS