Cabul, Afeganistão, 4/1/2012 – Os direitos das mulheres continuam marginalizados no Afeganistão, mas em nenhum âmbito essa desigualdade é tão chocante quanto no viciado sistema judicial deste país. A história de Yasmin* é um exemplo. A idade legal para a mulher se casar é de 16 anos. Contudo, quando ela tinha oito sua família acertou seu casamento com um homem de 60 anos, em uma afastada localidade da província de Nangarhar.
Depois de quatro anos de infelicidade, Yasmin fugiu com um homem de sua aldeia pelo qual se apaixonara. Quando o casal foi detido por fugir e voltar a casar, ela estava grávida. Deu à luz na prisão. Libertada, conseguiu alojamento em um abrigo de Cabul, temendo que sua família e seu primeiro marido, agora com 70 anos, a localizassem e a matassem pela honra manchada.
“O primeiro passo previsto é seu divórcio, pois agora tem 18 anos e o direito de fazê-lo”, disse Huma Safi, responsável pelo programa Mulheres pelas Mulheres Afegãs, uma organização que oferece abrigo e assistência legal e familiar. “O passo seguinte será conseguir um verdadeiro casamento com seu segundo marido, por quem está apaixonada. Este casamento também permitirá reduzir a sentença dele. E, então, poderão viver juntos”, explicou Safi.
Quando aconteceu a segunda Conferência de Bonn sobre o Afeganistão (Bonn II), no dia 5 de dezembro, as mulheres afegãs batalharam para serem ouvidas, uma década depois de a comunidade internacional ter se reunido nessa mesma cidade alemã para criar um mapa do caminho para que este país, arruinado por décadas de guerras, construísse suas instituições sobre o fundamento dos direitos civis.
As prioridades de Bonn II, no contexto da retirada das forças da coalizão internacional prevista para 2014, foram a transição da segurança, as conversações de paz com o movimento islâmico Talibã e as futuras relações regionais. O Banco Mundial alertou sobre a dependência afegã da ajuda internacional, que chega a mais de 90% de seu orçamento, de US$ 17,1 bilhões, e Bonn II foi um sinal das reduções que os doadores estão praticando.
Defensoras dos direitos das mulheres afegãs temem que seus projetos sofram as consequências dessa queda de recursos. Selay Gaffar, da Rede de Mulheres Afegãs, teve apenas três minutos na Conferência para pedir aos doadores que continuassem apoiando a defesa de seus direitos. A declaração final da reunião relacionou brevemente a igualdade de gênero com a Constituição afegã em matéria de governança e negociações de paz.
Nos últimos anos, as ativistas conseguiram criar consciência sobre os direitos de gênero e melhorar o acesso das mulheres a educação e saúde, em especial nas áreas urbanas. Também criaram abrigos, que recebem, por exemplo, mulheres como Yasmin, libertadas da prisão e que não podem voltar para sua casa devido à estigmatização. Entretanto, suas moradoras também não se sentem seguras nesses locais, nem têm liberdade de movimento.
Uma pesquisa da Thompson-Reuters, divulgada em junho do ano passado, colocou o Afeganistão como o país mais perigoso do mundo para as mulheres, por causa da violência, pobreza e falta de cuidados médicos. “Entre 2001 e 2003, se deu muita atenção aos direitos femininos, mas isso diminuiu”, destacou Huma Safi. “Nossa principal preocupação é não voltar à situação de 15 anos atrás. Não só à do regime do Talibã, tampouco à anterior. Na guerra civil dos mujahidines, muitas mulheres foram violadas. As pessoas estavam tão fartas do conflito que fomos esquecidas pela comunidade internacional”, acrescentou.
Às vésperas de Bonn II, o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, perdoou Gulnaz, uma moça de 21 anos violada e depois condenada por adultério, que deu à luz na prisão a um filho fruto dessa violência. Porém, a graça presidencial não é comum. A maioria das 700 mulheres detidas nas sórdidas prisões afegãs foram condenadas por adultério, ou “zina” (relações sexuais entre pessoas não casadas), castigo comum por fugir de um casamento forçado ou do abuso crônico. Muitas estão presas com seus filhos.
“Há dois tipos de casos, com inúmeras variantes, que se ouve uma e outra vez”, contou Heather Barr, pesquisadora da Human Rights Watch (HRW), com sede em Nova York. “Umas são muito jovens que, obrigadas a se casar contra sua vontade, fogem para que isso não aconteça. Às vezes sozinhas e outras com ajuda de um homem, por quem não estão realmente apaixonadas”, explicou Barr. “Outra categoria é a das mulheres casadas, quase sempre contra sua vontade, que sofrem violência doméstica, em geral física, mas às vezes verbal. E fogem. Estes casos costumam se converter em zina quando são acompanhadas por um homem”, esclareceu.
Segundo Barr, embora todas as mulheres que entrevistou tenham advogado, a qualidade da defesa não é boa, e os julgamentos carecem de investigação e provas. “Às vezes, o homem consegue o que quer mediante suborno, mas ela não. A zina está no Código Penal, mas não a fuga. Quando comentei isso com juízes e advogados, responderam que ao fugirem as mulheres se arriscam a incorrer nessa falta”, acrescentou.
Grande parte da população ainda apela para mecanismos tradicionais de justiça comunitária fora do sistema formal, segundo a HRW. Em 2009, Karzai promulgou a Lei Xiita da Família, que incluía a autorização do casamento de adolescentes de 14 anos e o direito dos maridos forçarem sexualmente suas mulheres. No entanto, após protestos da sociedade civil e da comunidade internacional a lei foi modificada.
Naquele mesmo ano, o governo aprovou a lei de Eliminação da Violência Contra as Mulheres, que pune atos como o casamento infantil ou forçado e a violação. Uma análise da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre sua implementação, divulgada em novembro, afirmou que “funcionários do sistema judicial começaram a aplicar a lei em muitas partes do país, mas seu uso constitui uma ínfima proporção da forma como o governo atende casos de violência contra a mulher”.
Mulheres como Zuhra* continuam sendo condenadas. Aos 12 anos, ela vivia em Cabul, quando a casaram com um homem mais velho que já tinha três esposas. Este a obrigou a se prostituir diariamente, até que a casa onde moravam foi invadida. Ela foi detida e ficou presa por dois anos. Agora tem 17 e vive em um abrigo. “Conseguimos que Zuhra se divorciasse, mas agora quer se casar novamente. Procuramos fazê-la entender que não precisa ter pressa. Não a culpo, quando saem da prisão, sentem que com um marido estarão protegidas”, disse Huma Safi. Envolverde/IPS
* Os nomes das mulheres foram trocados para proteger suas identidades.