UM. Imagine voltar para casa e dar de cara com uma cena de catástrofe: cada cômodo do seu lar, erguido ou adquirido após anos de trabalho, feito em pedaços de uma só vez. Ruínas, ou talvez menos que isso. Só sobram entulho, pertences e móveis; tudo atirado na rua. E não. Nada disso é “saldo” de desastre natural. Você acaba de ser removido e de ter violados, junto com sua casa, uma série de direitos – justo por aqueles cujo dever é garanti-los. Um decreto, e as paredes que abrigaram, por meses, anos ou décadas, alguns de seus sonhos e memórias, estão agora no chão. Como você se sentiria nessa situação? No Rio de Janeiro pré-megaeventos esportivos, muita gente experimentou, e talvez ainda experimentará, sensações parecidas. Foi assim que aconteceu na comunidade Restinga, na Zona Oeste da cidade, em dezembro de 2010.
DOIS. Após numerar e marcar diversas casas do morro com a sigla SMH (Secretaria Municipal de Habitação) e fazerem medições sem mais nem meio mais, técnicos da prefeitura avaliaram – bem abaixo do preço de mercado – imóveis do local, omitiram informações sobre os direitos dos moradores e, por fim, tentaram coagi-los para que assinassem documentos de procedência duvidosa, sem qualquer marca ou timbre da prefeitura ou da Secretaria Municipal de Habitação. A queixa unânime na favela é de que o projeto para o local sequer foi apresentado e tampouco discutido com a comunidade. Isto vem acontecendo desde o ano passado (e agora!), no Morro da Providência, Centro do Rio.
TRÊS. Dividir para conquistar! Esta parece ser outra das estratégias na guerra de desinformação declarada pelas autoridades à população das favelas no caminho das obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Os técnicos da prefeitura coagem, ameaçam, dizem aos moradores que eles têm de deixar suas casas o mais rápido possível, caso contrário poderão perder qualquer direito sobre os imóveis. As negociações, em geral, são feitas individualmente para impedir qualquer tipo de ação coletiva contra os abusos. Os escombros das demolições são deixados no local para que a área fique propositalmente degradada. Isto faz com que os moradores que decidiram permanecer em suas casas, sejam obrigados a se retirar por medo da insegurança que se instala com o abandono.
Francicleide Souza, líder comunitária da favela, diz que hoje só metade dos moradores permanecem no local. “Alguns foram realocados em Cosmos, a 70 quilômetros de distância. Quem permaneceu vive um impasse: os assaltos e roubos não param. Há moradores que já foram roubados cinco vezes e resolveram tirar os pertences de casa. Ficamos com medo de voltar e não encontrar mais nada. E isso só acontece porque a prefeitura foi minando o lugar”, conta a liderança. Isso acontece desde fevereiro (e neste momento!), na favela Metrô Mangueira, no Maracanã, Zona Norte do Rio.
QUATRO. Funcionários da prefeitura chegaram à favela afirmando que casas em diversos pontos do local estavam construídas em terrenos de alto risco. A avaliação foi a mesma nos casos em que simples obras de contenção poderiam livrar os moradores do perigo. Na casa de Suzana de Carvalho, além dos técnicos da prefeitura, esteve uma assistente social cujo parecer foi o seguinte: sua residência representava risco, sobretudo, para seus filhos pequenos. Suzana foi avisada de que se insistisse em permanecer no local, poderia inclusive perder a guarda de suas crianças. “Disseram que eu tenho que sair e que minha casa vai cair, matando meus filhos. Dizem que o pessoal que decidir ir embora vai para Campo Grande. Mas como posso ir para tão longe se meus filhos estudam aqui? Ainda vou ficar refém de um aluguel social que pagam quando querem?”, questiona a moradora. Acontece (hoje!) no Pavão Pavãozinho, na Zona Sul.
Os dramas da Restinga, Providência, Metrô Mangueira e Pavão Pavãozinho, são apenas quatro das inúmeras facetas do “lado B” da chegada da Copa e das Olimpíadas. O quadro deve piorar. Estima-se que, somente no Rio, serão entre 20 mil e 25 mil removidos. No Brasil, até 2016, deve ficar entre 80 mil e cem mil o número de despejados.
Fora a destruição de favelas e expulsão dos seus moradores, haverá consequências humanas para trabalhadores ambulantes, impedidos de circular nas imediações dos estádios onde acontecerão os jogos; moradores em situação de rua e trabalhadores(as) sexuais, que sofrerão verdadeiro banimento das ruas, e até mesmo para a classe média, interessada em renovar contratos de locação ou na aquisição de imóveis em áreas agora hiper-valorizadas pela disparada do custo da moradia.
Comitê popular: pela vitória dos direitos humanos
Em resposta às violações de direitos e aos projetos e concepções de cidade impostos pelo Estado brasileiro às sedes dos grandes jogos, movimentos populares, associações de moradores, ONGs, sindicatos, defensores dos direitos humanos, estudantes, pesquisadores e acadêmicos se uniram para formar o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas. O grupo – representado em entrevista coletiva, no dia 29 de julho, pela líder comunitária Inalva Brito, o coordenador da Central de Movimentos Populares, Marcelo Braga, a economista Sandra Quintela, e o professor da Universidade Ferderal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Vainer – afirmou que não é contrário aos grandes jogos e sim a favor de que o povo seja incluído nas benesses e legados trazidos pelos altíssimos investimentos públicos empregados na realização das competições.
“Convocamos a imprensa para tentar acabar com essa cortina de silêncio e desinformação deflagrada pelo Estado brasileiro neste momento”, disse o professor Carlos Vainer. Segundo ele, a Copa e as Olimpíadas com orçamento estimado em R$ 25 bilhões, consumirão, na verdade, mais de R$ 60 bilhões. “Em 2001, os Jogos Pan-Americanos extrapolaram em dez vezes o orçamento programado, chegando a R$ 3,5 bilhões”, afirmou. Atualmente, as obras do Maracanã são o maior símbolo do desperdício de dinheiro público. A reforma anterior do estádio para os jogos Pan-Americanos, que custou R$ 500 milhões, será sobreposta por uma nova obra, no valor de R$ 1,5 bilhão.
O coordenador da Central de Movimentos Populares, Marcelo Braga, afirmou que no caso da favela Metrô Mangueira, ao lado do estádio, onde 800 residências e cem estabelecimentos comerciais estão ameaçados de remoção, se poderia realizar a urbanização com menos de 10% dos recursos investidos no Maracanã. “Os jogos tem de ser uma oportunidade de repensar a cidade e não uma forma de excluir mais ainda as populações empobrecidas”, diz Braga.
“Não se pode construir bairros para uma única categoria social. Querem transformar nossa cidade em uma série de cidadelas sitiadas, vigiadas pela polícia”, o Rio de Janeiro se tornou uma cidade-produto e neste produto não há espaço para as comunidades pobres. Querem, por exemplo, revitalizar a Zona Portuária. Mas por quê? “Revitalizar”? As pessoas que moram lá estão mortas? É terrível esse conceito de revitalização!, completa o professor Vainer.
A situação da família de Érica Leite, moradora do Pavão Pavãozinho, em Ipanema, é uma figura do contexto das cidades nos momentos que antecedem os megaeventos. Sua casa, assim como outras da favela, foi declarada por técnicos da administração municipal como sendo de alto risco. Érica conseguiu com outro engenheiro um contra-laudo que desmente a versão da prefeitura sobre várias das áreas da comunidade declaradas de risco. “A prefeitura diz que nossas comunidades estão em áreas de risco. Eles querem é transformar essas comunidades em áreas para ricos. Eles nos querem fora dali para construir outras coisas que rendam mais dinheiro”, desabafa a moradora.
A economista Sandra Quintela chamou atenção para o fato de que o povo jamais foi chamado a opinar sobre a realização dos grandes jogos. “Numa cidade em que os direitos constitucionais são respeitados, a população deveria ser consultada. Isso não aconteceu. Se assim tivesse sido, a população analisaria, olharia para suas necessidades e recusaria o tipo de proposta que está sendo colocada em prática pelo Estado”, opina.
* Publicado originalmente no site Observatório das Favelas.