O quase golpe do sequestro falso: uma questão de classe

Tempos atrás, minha mãe recebeu um golpe do sequestro falso por telefone – aquele em que alguém liga chorando, imitando a voz de um ente próximo, dizendo que está em um cativeiro, e o bandido ordena que se carregue de créditos um celular pré-pago, caso contrário o refém será executado. O golpe é bem conhecido (e fraco também, pois pedir créditos para celular é o ó do borogodó), mas assusta quem é contemplado. Talvez a exceção seja a de um casal de amigos meus que recebeu o telefonema de alguém que dizia estar com sua filha, apesar deles não terem nenhuma.

Citaram o nome do meu irmão. Como não moro com meus pais e meu irmão estava viajando, minha mãe sofreu momentos de desespero antes de conseguir nos contatar. Foi só o susto, que poderia ter virado coisa pior, considerando seus problemas do coração. Um aposentado no Rio de Janeiro enfartou após receber o golpe.

Tragédia à parte, o interessante é que, durante a conversa, minha mãe tentou explicar que a família não tinha recursos, o que é a mais pura verdade, mas que faria tudo o que eles pedissem para soltar o filho. Então, o suposto sequestrador perguntou o bairro em que ela morava. Quando explicou que era o Campo Limpo, bairro da periferia paulistana, o rapaz disse a ela para se tranquilizar, que era a pessoa errada e meu irmão estava bem.

Esta é primeira vez que escuto que o bandido desistiu do golpe por, o que considero, uma identificação com o outro lado da linha. Será porque ele conhece o bairro, tem parentes e amigos lá ou porque percebeu que não daria para extorquir muito? Prefiro acreditar que ele sabe o que é viver na periferia. Não farei uma discussão longa, mas queria levantar um ponto.

Pode parecer um paralelo meio distante, mas o Primeiro Comando da Capital (PCC) diminuiu o consumo do crack nos presídios de São Paulo, pois a droga está afetando sobremaneira o comportamento dos detentos, além de destruir rapidamente o organismo dos consumidores. A mesma ação tem sido tomada em alguns bairros periféricos, para proteger os consumidores locais. Não estou defendendo o PCC – peloamordedeusjesusmariajosé – apenas constatando algo. Ninguém está falando que o PCC tem consciência social. É claro que crack mata e mortos não compram droga. E como toda organização com fins econômicos, eles querem ganhar dinheiro com o aumento de mercados e não sua diminuição.

O reconhecimento do outro como um semelhante, como parte potencial de um mesmo grupo, é um dos fatores que garantem a existência de comunidades e a garantia da proteção a outros que não tenham relações consanguíneas. Será que o bandido acalmou a minha mãe porque pensou na própria mãe ou na avó, que morariam no mesmo bairro ou em Cidades Tiradentes, Parelheiros, Brasilândia? Nunca saberei. Contudo, essa dúvida me fortalece a esperança de que há muitas formas para combater a violência que não seja uma chacina cega realizada por ambos os lados.

A pergunta é: como esses que chamamos de bandidos podem reconhecer em pessoas de bairros ricos seus semelhantes se a sociedade insiste em mantê-los alienados de sua cidadania e manter intocada a relação de castas, em que uns têm tudo e outros nada? São pessoas e, portanto, iguais em dignidade, mas tratados como bichos na prática. Em outras palavras, como tentar ser semelhante, e iniciar um diálogo pela paz, em um mundo que insiste em que alguns são mais iguais que os outros?

Se alguém tiver a resposta, me liga. Se estiver num celular pré-pago, pode ser a cobrar.

* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.