O número de dias e noites quentes aumentou e o número de dias e noites frias diminuiu por toda parte, em escala global. Na maioria das regiões do planeta para as quais há dados suficientes, mas não em todas, observa-se que o número e a duração das ondas de calor aumentaram. Houve aumento estatisticamente significante do número de chuvas pesadas em algumas regiões do mundo e é provável que a frequência de chuvas torrenciais como uma proporção do total de chuvas aumente ao longo do século em várias áreas do globo. As velocidades médias máximas dos ciclones tropicais, a intensidade e tamanho dos furacões, tufões e ciclones também devem aumentar, embora seu número tenda a ficar mais ou menos constante.
Estudos analisados pelo IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, da ONU, baseados em evidências de observações coletadas desde 1950, registraram essas e outras mudanças no clima e no tempo da Terra. Estão no Sumário Executivo do Relatório Especial sobre Gerenciamento de Riscos de Eventos Extremos e Desastres para Promover a Adaptação à Mudança Climática (Special Report on Managing the Risks of Extreme Events and Disasters to Advance Climate Change Adaptation – SREX) que o IPCC tornou público no final da semana passada.
Esses estudos detectaram além de mais calor diário e noturno e chuvas intensas, aumento das secas e de águas costeiras extremamente altas por causa do aumento médio do nível do mar. Algumas regiões do mundo têm experimentado secas mais intensas e mais longas. Esse fato está mais bem documentado no sul da Europa e na África Ocidental. Na parte central da América do Norte e no noroeste da Austrália, os dados indicam secas menos intensas ou menos extensas.
Essas e outras conclusões estão no documento. Mas precisam ser resgatadas do emaranhado de precauções que as cercam por todos os lados. Parte da precaução é justificada, parte é insegurança, parte é determinada por fatores estranhos ao trabalho científico.
O relatório, com todas as precauções, diz que “um clima em mudança leva a alterações na frequência, intensidade, extensão territorial e duração de eventos climáticos extremos e podem resultar em eventos climáticos nunca antes experimentados”.
Os cientistas reunidos pela ONU, no quadro da Convenção do Clima (UNFCCC), alertam para o fato de que essa elevação do risco de desastres associados à mudança climática deve ser incorporada aos planos e políticas públicas de todos os países. Ações de mitigação (redução de emissões de gases estufa) e adaptação à mudança climática já em curso podem ser complementares e contribuir, em conjunto, para reduzir os riscos. Os cientistas chamam atenção para o fato de que políticas governamentais e estratégias de desenvolvimento têm papel crítico na determinação do risco de desastres, que pode aumentar por causa das falhas de políticas e de insuficiências no processo de desenvolvimento.
Degradação ambiental, desmatamento, ocupação inadequada das costas, urbanização rápida e sem planejamento em áreas de risco, falhas de governança e a escassez de oportunidades para os mais pobres podem elevar fortemente a probabilidade de que eventos climáticos extremos se transformem em desastres. A vulnerabilidade das populações está diretamente associada às desigualdades entre países e dentro dos países. “As desigualdades influenciam a capacidade local de enfrentar e se adaptar e impõem desafios adicionais de gestão de risco de desastres e adaptação à mudança climática do plano local ao nacional”, diz o relatório.
Os cientistas recomendam, também, que a recuperação e reconstrução pós-desastres sejam usadas como oportunidades para reduzir o risco climático e aumentar a capacidade de adaptação.
A ênfase na adaptação, em todo o relatório, deixa claro que já estamos experimentando mudança climática e ela tem contribuído para incrementar a incidência de eventos climáticos extremos. Indica ainda que um aumento adicional desses eventos já é inevitável. O que se pode evitar é o agravamento até um ponto em que a mudança climática se torne uma tragédia global.
Os eventos extremos que já ocorrem se distribuem desigualmente pelo planeta. Os mais vulneráveis a esses eventos são os países mais pobres e as populações mais pobres dentro de países com maior desenvolvimento ou já desenvolvidos. Me lembrou uma frase do escritor de ficção científica, William Gibson, em uma entrevista na qual lhe pedem para falar sobre o futuro. Ele disse “o futuro já chegou, ele só está mal distribuído”. O que o IPCC está dizendo é isso: a mudança climática já chegou e ela está mal distribuída. Os riscos climáticos são presentes e reais e estão mal distribuídos.
Pelo título do relatório já se pode ter uma ideia de como seu texto é inóspito. De fato, o relatório é quase ilegível tantas são as precauções adotadas, a cada frase, para mostrar que não há certezas absolutas, em vários casos os dados são ainda insuficientes para grandes conclusões e para algumas áreas faltam estudos mais confiáveis. Tudo isso poderia ser resumido em alguns parágrafos de precaução e o texto consolidando evidências, hipóteses e conclusões escrito em texto corrido e legível para o público em geral. Afinal, as conclusões dos cientistas interessam a todos, deveriam servir para que as comunidades pressionem seus governos para adotarem medidas apropriadas e ajustem seus comportamentos a esse quadro de maior risco.
Mas o IPCC tem duas limitações severas. Primeiro, seus relatórios têm que passar pelo crivo político dos países que são partes na Convenção do Clima e é grande a pressão para tornar suas conclusões mais convenientes do ponto de vista político. As ambiguidades que a política insere na versão para “formuladores de políticas” podem, entretanto, ser corrigidas no relatório completo voltado para cientistas e técnicos. Usualmente, os textos para o público especializado são mais completos e menos ambíguos, embora continuem a padecer de linguagem científica muitas vezes desnecessariamente tortuosa.
A segunda limitação é mais abrangente. O IPCC se tornou o alvo de “negacionistas”, aqueles que negam a ciência do clima e a hipótese de que a mudança climática resulta da ação humana. São também chamados de “céticos”, mas é uma denominação imprópria. O ceticismo é um atributo intrínseco da ciência. A ciência tem como regra de ouro duvidar de suas hipóteses e tentar rejeitá-las.
Como a imprensa abrigou, durante muito tempo – e os setores mais conservadores da mídia continuam a abrigar – essas dúvidas sobre a qualidade da ciência climática, o IPCC está na berlinda. Cada afirmação mais direta é prontamente contestada. Os erros são buscados com lupa.
Essa atenção crítica é saudável. O problema é que parte dela não é orientada pelo método científico, nem pela investigação apurada, mas por atitudes ideológicas predeterminadas e largamente imutáveis. Quando o ceticismo deriva de legítima e necessária dúvida científica, ele se resolve no próprio exercício da ciência.
Foi o que aconteceu com o projeto Berkeley Temperatura da Superfície da Terra (Berkeley Earth Surface Temperature – BEST). Ele reconheceu que as tendências de aquecimento global são exatamente aquelas apontadas pelo IPCC, pela NASA e NOOA e pelo Hadley CRU da universidade britânica de East Anglia. Este último foi objeto de acesa controvérsia, a partir da divulgação de emails surrupiados de seus computadores. Analisei esse escândalo em meu livro Copenhague Antes e Depois. O BEST, como é conhecido, foi criado por Richard Muller, um “negacionista” com boa reputação acadêmica, e financiado em grande parte pela Koch Foundation, uma fundação ligada à indústria de petróleo e que tem financiado generosamente blogs, sites e estudos voltados para a negação da ciência do clima e da mudança climática. Teoria da conspiração à parte, a Koch Foundation tem dado muito dinheiro a propagandistas conservadores da causa anti-ciência do clima, nem sempre cientificamente qualificados. No caso do estudo de Berkeley, o financiamento foi para um projeto respeitável.
Mas esse assédio dos negacionistas e a atenção da mídia, nem sempre versada nos temas da ciência, marcou os textos do IPCC por extrema precaução. Não há uma frase substantiva que não estejam intercaladas por condicionantes relativos à base de dados, à precisão das conclusões, ao escopo e alcance das afirmações. Quem lê o texto, sem atenção para o contexto de autolimitação por fatores ligados à dinâmica interna do IPCC e a controles externos, perde a noção da relevância das conclusões. Elas são relevantes, apontam para riscos reais e concretos e deveriam ser levadas em consideração.
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** Publicado originalmente no site Ecopolítica.