Talvez nunca um político tenha tido tantas grafias desencontradas para seu nome, como Muammar al Gadhafi, Khadaffi, Gadaffi, para citar apenas algumas delas. O fato, oriundo na verdade das diferenças fonéticas entre o árabe e outras línguas, não deixa de ser uma metáfora da personalidade enigmática e multifacetada desse capitão revolucionário que se transformou num ditador sanguinário, ao mesmo tempo excêntrico e bufão.
Entre as comemorações e obituários por sua morte, a versão em inglês e on line da revista alemã Der Spiegel ressuscitou uma foto histórica e hoje irônica, de outubro de 2010. Sorridentes, confraternizando, lá estão Gadhafi, Hosni Mubarak, do Egito, Zine el Abidine Ben Ali, da Tunísia, e Ali Abdullah Saleh, do Iêmen. Hoje, um ano depois, Gadhafi está morto, provavelmente assassinado depois de feito prisioneiro, Mubarak está preso e sob julgamento no Egito, Ben Ali está num exílio endinheirado na Arábia Saudita, e Saleh está cai-não-cai, às voltas com uma ampla revolta contra ele e um processo que vai em direção à guerra civil, lutando tenazmente para se manter no poder, tentando resguardar o apoio da mesma Arábia Saudita e dos Estados Unidos.
Além de terem sido (e ainda ser, no caso de Saleh) sanguinários ditadores, há outro traço que une o quarteto: na época da foto, um ano atrás, ainda eram meninas dos olhos das potências ocidentais. Mubarak, Ben Ali e Saleh o foram desde sempre, até caírem, os dois primeiros, em desgraça durante as revoltas populares que os depuseram. Saleh está agora “sub judice”, apesar de provavelmente ter ainda o apoio saudita, pelo menos para encaminhar uma transição que mantenha seu país sob o controle da “diplomacia” de Ryad.
Este não foi o caso de Gadhafi. Este entrou para o clube dos benquistos apenas no Século 21. Antes, era um maldito por várias razões. Entre estas estava o apoio à prática e ao acobertamento de atos terroristas em escala internacional. Mas também o pecado mortal de ser um dos líderes insurgentes do nacionalismo pan-arábico dos anos 1960, um remanescente jovem da geração de Nasser (Egito) e Mossadegh (Pérsia/Irã), que contrariou os interesses britânicos, franceses e norte-americanos na região.
Gadhafi criou seu próprio “socialismo”, um regime hipotético chamado “Jamahiryah”, que supostamente livraria a humanidade da exploração do homem pelo homem: ninguém trabalharia para outrem, nem haveria dinheiro nesse regime, exposto no seu Livro Verde. Entretanto, esse ideal utópico nunca se concretizou. Na verdade, sequer começou. Seu líder e mentor se perverteu antes, o que transformou o jovem capitão dos anos 1960 no histriônico, patético, mas não menos cruel ditador dos anos subsequentes.
Evidentemente ainda está para ser escrita uma biografia convincente deste enigma chamado Gadhafi. Talvez ela nunca venha a ser escrita. Em sua coluna no The Guardian, Simon Tisdall permite que se avance a hipótese de que uma das chaves dessa passagem de um para o outro Gadhafi estivesse no seu isolamento dentro do mundo árabe. A morte de Nasser, a quem ele admirava, abriu caminho para uma geração de políticos como Anuar El-Sadat e o próprio Mubarak, que enterraram não só os sonhos nacionalistas daquele, mas o pan-arabismo como oposição política ao Ocidente. Na Argélia, a política também rumou para a direita; e nos outros países da região (Norte da África e Oriente Médio), ou permaneciam monarquias ou “presidencialismos” despóticos e retrógrados, ou o vago socialismo brandido como bandeira cedia espaço a regimes brutais como os da Síria e do Iraque. A Gadhafi restou o isolamento só rompido com a aproximação com grupos e personalidades voltadas para a contestação terrorista da ordem internacional, tudo isso envolto numa política ao mesmo tempo familiar e cada vez mais megalomaníaca, de fundamento cada vez mais messiânico.
É verdade que Gadhafi aparecia como uma espécie de fulcro de apoio e convergência num país extremamente dividido por conflitos regionais e tribais. Fica a se verificar, no futuro, a que destino esse país chegará, agora que o fator de agregação desapareceu. Gadhafi foi esse fator de agregação enquanto reinou e também enquanto caiu, com vários de seus antigos seguidores passando para a oposição e sendo, agora, também proeminentes no Conselho Nacional de Transição (CNT).
Por sua vez, a moldura ocidental que apoia esse CNT não tem uma tradição positiva: nunca uma intervenção dessa moldura levou os territórios daquela região à democracia. Pelo contrário, sempre levou à exploração em proveito próprio (da moldura) dos recursos naturais e humanos daqueles países.
Ironicamente, talvez tenha sido a última transformação de Gadhafi, passando de “odiado inimigo” a “amigo do ocidente”, o que tenha apressado seu fim. Isso teria minado seu papel de catalisador do descontentamento antiocidental na região e em seu país, tirando-lhe de debaixo dos pés o que restava da antiga aura do capitão rebelde, ficando apenas a imagem do excêntrico ditador voltado contra seu povo, além da fortuna familiar que acumulara ao longo do tempo e mais recentemente graças aos novos investimentos chegados à Líbia.
Por fim, terá sido ele morto num tiroteio ou executado? O informe oficial afirma a primeira hipótese. As imagens sanguinárias divulgadas logo depois de sua morte sugerem fortemente o contrário. Também sugerem essa segunda hipótese declarações como a de Hillary Clinton, no dia 18: “Esperamos que ele seja capturado ou morto logo, para que não inspire mais medo”. Ou a de Mahmoud Jibril, no dia 20, depois do anúncio da morte de Gadhafi: “Esperamos durante muito tempo por esse momento. Moammar (sic) Gadhafi foi morto”. É interessante lembrar que Jibril foi presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico na última fase do governo de Gadhafi, promovendo políticas de “liberalização econômica” e de “privatizações”, o que confirma, “mutatis mutandis”, o verso de Augusto dos Anjos: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”. Aliás, na mesma direção vai a frase de um dos proeminentes líderes do Ocidente, que, como Gerhard Schröder, Nicolas Sarkozy, Tony Blair e muitos outros, até há pouco recebia Gadhafi de braços abertos: “Sic Transit Gloria Mundi”.
Quem disse isso, ao tomar conhecimento da morte de Gadhafi? Silvio Berlusconi.
Não poderia haver pior epitáfio.
* Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.