O segredo do modelo nórdico: Coisas raras

Eduardo Galeano –

Arcada, 18/01/2005 – Em 2002, Clint Mathis, estrela do futebol dos Estados Unidos, anunciou que sua seleção venceria o campeonato mundial. Era lógico, era natural, como explicou, “porque nós somos o país líder em tudo”. O país líder em tudo acabou em oitavo lugar. No futebol ocorrem coisas raras. Em um mundo organizado para a cotidiana confirmação do poder dos poderosos, nada existe de mais raro do que a coroação dos humilhados e a humilhação dos coroados, mas no futebol às vezes se vê essa raridade.

Sem ir muito longe, em 2004 um clube palestino foi campeão de Israel, pela primeira vez na história, e pela primeira vez na história um clube checheno foi campeão na Rússia. E na Olimpíada da Grécia, a seleção de futebol do Iraque, em plena guerra, venceu várias partidas e chegou a disputar as semifinais do torneio, de surpresa em surpresa, contra todo prognóstico e toda evidência, e foi a número um no gosto popular.

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O clube árabe Bnei Sakhnin e o clube checheno Terek Grozny, flamantes campeões de Israel e da Rússia, têm algumas coisas em comum com a seleção nacional do Iraque. Trata-se de equipes que de alguma maneira representam povos que não têm o direito de ser o que querem ser, que sofrem a maldição de viverem submetidos a bandeiras alheias, despojados de sua soberania, bombardeados, humilhados, empurrados ao desespero.

E como se isso fosse pouco, as três são equipes modestas, quase desconhecidas, sem nenhum jogador famoso, e pobres. Na realidade, nem mesmo possuem estádio. Nunca jogam em casa. São equipes errantes, condenadas a jogar em terras estrangeiras e diante de arquibancadas vazias. Na aldeia de Sakhnin, na Galiléia, nunca houve um estádio ou algo semelhante, embora o governo israelense o tenha prometido várias vezes. O Terek jogava no estádio de Grozny, que está fechado desde que os independentistas chechenos colocaram ali uma bomba sob o assento do presidente imposto pelos russos.

No Iraque só há campos de batalha. Já não restam campos de futebol. As tropas de ocupação, que a esta altura já esqueceram os pretextos de sua invasão criminosa, transformaram os espaços desportivos em hospitais ou cemitérios. Onde estava o estádio de Bagdá existe agora uma base militar que abriga tanques dos Estados Unidos. A seleção iraquiana treinou em campos onde pastavam rebanhos de ovelhas.

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Um símbolo poderoso, um assunto misterioso: não se sabe porquê, embora não faltem teorias, mas o fato é que no mundo de nosso tempo muita gente encontra no futebol o único espaço de identidade no qual se reconhece, e o único no qual acredita de verdade. Seja como for, a dignidade coletiva tem muito a ver com a viagem de uma bola que anda pelos caminhos do ar.

E não me refiro somente à comunhão que a torcida celebra com seu clube a cada domingo das tribunas do estádio, mas também e, sobretudo, a partida jogada na várzea, nas praias e nos poucos espaços públicos ainda não devorados pela urbanização enlouquecida. Enrique Pichon-Rivière, psiquiatra argentino, ardente estudioso da dor humana, havia comprovado a eficácia do futebol como terapia das patologias derivadas do desprezo e da solidão. Esse esporte compartilhado, que se desfruta em equipe, contém uma energia que muito pode ajudar o desprezado a se querer e a salvar da solidão os que parecem condenados ao isolamento perpétuo.

Nesse sentido, é muito reveladora a experiência na Austrália e na Nova Zelândia. Ali, as línguas nativas não conheciam a palavra “suicídio”, pela simples razão de que o suicídio não existia na população aborígene. Após alguns séculos de racismo e marginalização, a violenta irrupção da sociedade de consumo e seus implacáveis valores conseguiram que os indígenas escolhessem se enforcar. Nos últimos anos, suas crianças e jovens registraram os índices de suicídio mais altos do mundo.

Diante desse panorama aterrador, de tão profundas raízes, de raízes tão quebradas, não há fórmulas mágicas de cura. Mas em alguma coisa coincidem os testemunhos da linda gente que trabalha contra a morte. São surpreendentes os resultados desta terapia capaz de devolver os perdidos sentimentos de pertinência e fraternidade: o esporte, e sobretudo o futebol, é um dos poucos lugares que dão refúgio a quem não encontra lugar no mundo, e muito contribui para o restabelecimento dos laços solidários rompidos pela cultura da desvinculação que hoje reina na Austrália, na Nova Zelândia e no mundo.

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Não é um milagre químico. Estão dopados pelo entusiasmo e pela alegria. Melhor dito: dopadas. Os 11 jogadores de cada equipe são muito mais do que 11. Melhor dito: as 11 jogadoras. Neles, joga um gentio. Melhor dito: nelas. Estes são rituais de afirmação dos humilhados. Melhor dito: das humilhadas.

Pouco a pouco, o futebol das mulheres foi ganhando um espaço nos meios dedicados à divulgação desse esporte de machos para machos, que não sabe o que fazer com esta imprevista invasão de tantas senhoras e senhoritas.

Em nível profissional, o desenvolvimento do futebol feminino encontra hoje em dia certa ressonância. Mas não encontra nenhum eco, ou desperta ecos inimigos, no jogo que se pratica pelo puro prazer de jogar. Na Nigéria, a seleção feminina é um orgulho nacional, disputa os primeiros lugares no mundo. Mas no norte muçulmano os homens se opõem, porque o futebol convida as donzelas à depravação. Porém, acabam por aceitá-lo, porque o futebol é um pecado que pode levar à fama e salvar a família da pobreza. Se fosse pelo ouro que o futebol profissional promete, os pais proibiriam essas roupas indecentes impostas por um satânico esporte que deixa as mulheres estéreis, por lesão de jogo ou castigo de Alá.

Em Zanzibar e no Sudão, os irmãos homens, guardiões da honra da família, castigam com surras esta louca mania de suas irmãs que se julgam homens capazes de chutar uma bola e que cometem o sacrilégio de desnudar o corpo. O futebol, coisa de machos, nega às mulheres campo de treinamento e de jogo. Os homens se negam a jogar contra as mulheres. Por respeito à tradição religiosa, dizem. Pode ser. Além disso, acontece que cada vez que jogam, perdem.

Na Bolívia, do outro lado do mar, não há problema. As mulheres jogam futebol, nos povoados do altiplano, sem tirarem suas numerosas saias. Colocam por cima uma camiseta colorida e saem fazendo gols. Cada partida é uma festa. O futebol é um espaço de liberdade aberto às mulheres cheias de filhos, esmagadas pelo trabalho escravo na terra ou nas tecelagens, submetidas a freqüentes surras de seus maridos bêbados. Jogam descalças. Cada equipe vencedora recebe como prêmio uma ovelha. A equipe derrotada, também. Estas mulheres silenciosas riem às gargalhadas durante a partida e depois continuam morrendo de rir ao longo do banquete. Festejam juntas, vencedoras e vencidas. Nenhum homem se atreve a meter o nariz. (#Envolverde/IPS)

Eduardo Galeano. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil   11/04/2014
Eduardo Galeano. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil 11/04/2014

(*) Eduardo Galeano, era escritor e jornalista uruguaio, autor de “As veias abertas da América Latina” e “Memórias do fogo”.

** Este artigo faz parte da homenagem  da Envolverde a esse grande homem, jornalista, escritor e pensador da América Latina, que morreu hoje (13) aos 74 anos. Leia outros textos aqui.