O sentido de urgência segundo um homem lúcido e comprometido
“A espécie humana não pode suportar muita realidade.” Citação do poeta inglês Thomas S.
“A espécie humana não pode suportar muita realidade.”
Citação do poeta inglês Thomas S. Elliot no livro A Urgência do Presente – Biografia da Crise Ambiental, de Israel Klabin, Elsevier Editora, Rio de Janeiro, 2011
Poucos seres humanos, homens ou mulheres, e considerando a expectativa de longevidade conquistada pelas últimas gerações, podem se dar ao luxo de ter vivido de modo tão intenso e engajado oito décadas, participando de eventos importantes na vida social, política e ambiental do Brasil, e de outras nações. Este privilégio foi e é vivido por Israel Klabin que nos brinda com um livro inquieto, instigante, bem escrito e que, aos olhos atentos dos diversos públicos que hão de se interessar por ele, pode revelar muitas dimensões da vida pública de um homem de nossa elite econômica e intelectual, bem como do ambientalismo. Qualifico o ambientalismo como ideologia política por excelência, ainda que muitos o vejam apenas como um movimento (entre tantos nas sociedades complexas) ou como uma escola de pensamento, entre outras – que se esforça por decodificar o nosso tempo, a história contemporânea.
Por falar em tempo, o próprio título do livro revela a dramaticidade do enredo construído por Klabin: A Urgência do Presente; e assim mostra uma visão comum a muitos livros que tratam de um modo catastrofista para alguns ou realista, dirão outros, os perigos pelos quais estamos atravessando, enquanto humanidade, por estarmos “postergando” decisões ou não tratando com a devida atenção os fenômenos do aquecimento global, da deterioração ambiental em geral (florestas, mares, oceanos e água doce), assim como da explosão demográfica que legará nove bilhões de pessoas ao planeta em 2050.
A dramaticidade e o sentido de urgência atravessam todo o livro, que é rico em informações científicas, técnicas e da arquitetura das instituições que atuam na área ambiental, e culminam com os dois cenários que o autor aponta já nos capítulos finais: um tipo “Blade Runner” (no qual todas as profecias de catástrofe se realizaram) e outro tipo Londres em ritmo de Olimpíadas, onde as pessoas fizeram o dever de casa e estão felizes, confortáveis por terem enfrentado os desafios do presente (se a crise econômica deixar).
Os dois cenários, polarizados, falam mais de Israel Klabin, o ambientalista, herdeiro da cultura judaico-cristã dos grandes profetas do que da realidade que deseja descrever e influenciar. Em nenhum momento a urgência (do aqui e agora) e os eventos extremos (que já começam a afligir a humanidade segundo o livro) deixam a reflexão resvalar para um confuciano “caminho do meio”, permitindo que nem a visão pessimista ou a otimista predominem, deixando vir à tona a constatação simples de que as sociedades são desiguais, que as culturas têm percepções diferentes do que seja a vida e a morte, ou mesmo a evolução, e de que os paradigmas de desenvolvimento das sociedades orientais não são os mesmos das ocidentais.
Uma “governabilidade ambiental global” é, em muitos aspectos, a história frágil e desconexa que ele mesmo disseca no capítulo que dedica à “arqueologia das COPs”, qualificando a trajetória das COPs (Conferências das Partes) de clima como caótica e pouco operante. Chega a afirmar que a maioria das conferências são hoje caros e anedóticos “passeios turísticos” – e que nada sério se avizinha depois de Kyoto (que, segundo sua análise, não representou grande coisa em termos dos resultados).
O mundo, esta é a sua certeza, será marcado em 2050 pelo aumento da temperatura dos mares, por mais emissão de carbono e por problemas agora trazidos pelos emergentes como China, Índia e Brasil, além da Rússia. Não podemos negar que as evidências levam à perspectiva de um mundo diferente que apontará para a geração – daquele presente – desafios talvez iguais ou superiores aos que nos são apresentados hoje. Em muitos momentos a pergunta de natureza ontológica é: evoluiremos pelo amor, compreensão da natureza e do desígnio do Cosmos, ou pela dor, cegueira, indecisão, negligência (pergunta). Basta uma espiadinha na “longa duração” de Braudel para vermos que não há como separar luz e sombra e que ambas as pedagogias caminham juntas sobre a Terra, ainda que algumas culturas afirmem portar as luzes.
Quando comecei a publicar a pesquisa nacional O que o Brasileiro Pensa do Meio Ambiente, em 1992, e já com mais quatro edições desde então, tentávamos entender o fenômeno do ambientalismo em nosso país. Naquele primeiro momento, em que mapeávamos as tendências, era possível identificar um grupo de ecodinossauros (um exemplo é o ainda militante dr. Paulo Nogueira Neto); um outro grupo de policy-makers engajados no combate à poluição, sobretudo urbana que chamamos de ambientalistas pragmáticos; um grupo grande e politicamente forte de conservacionistas (herdeiros da tradição da escolas de pensamento que culminaram com as políticas de áreas protegidas em vários países); um grupo simpatizante dos verdes europeus que tentavam produzir uma renovação no campo da política, designada por eles mesmos de ecopolítica (Sirkis, Minc, Gabeira), e ainda um pequeno grupo mais colado às filosofias alternativas de cunho holístico, muito próximo daquilo que conhecemos como ecologismo ético (Capra, Boff, Marina).
Nos anos 1990, com a crescente adesão ao conceito de desenvolvimento sustentável, esses diversos grupos se amalgamaram, perderam contornos ideológicos e misturaram saudavelmente tendências (e classes sociais), à medida que a agenda ambiental foi ganhando relevância na agenda tanto política estrito senso quanto pública de uma maneira geral, dentro e fora do Brasil.
Sem dúvida nenhuma, hoje podemos dizer que a maior parte dos ambientalistas forma um grupo que denominamos de sustentabilistas. Acreditam no tripple bottom line (a teoria dos três pilares do desenvolvimento) e alguns mais, outros menos, acreditam no fundo, que a sociedade deve se ecologizar (ser regida por padrões de organização ecológicos). Dividindo-se basicamente em fundamentalistas e pragmáticos, estes dois grupos se diferenciam apenas em dois aspectos: o quanto se deve aprofundar a reforma (do Estado, da sociedade e do self) para se alcançar o que todos desejam no fundo – uma relação mais harmônica e equilibrada entre os povos, as culturas e destas com o planeta; em última instância, fundar uma nova economia, a dos bens e serviços que os ecossistemas prestam hoje à humanidade e à sobrevivência das demais espécies (vegetais e animais).
Israel Klabin não foge à regra, e a sua própria evolução política, incansavelmente descrita no livro mostra isso. De um homem pró-Israel e pró-norte-americano, posição que não era trivial nem fácil de ser defendida 20 anos atrás em nosso país, torna-se cada vez mais um universalista e um ambientalista combativo. Por adotar ferrenhamente as evidências da ciência (mais objetivas e mais neutras politicamente), sente-se em terreno seguro e confortável para descrever a sua trajetória e a da FBDS (Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável), instituição que criou nos idos de 1992 e que preside até hoje, revelando uma teia de relações, de conexões políticas e de teses saborosas se as analisamos com o mesmo tom generoso com que o autor as entrega para nós, leitores.
Mais do que a biografia da crise ambiental, o livro de Israel Klabin é uma autobiografia corajosa, e um desvelamento generoso, repito, de vários fatos importantes da nossa história recente. Trata-se de um livro de um homem lúcido, apaixonado e que deseja deixar a sua marca, seu legado.
Convido os leitores que se interessam pelos temas ambientais e pelas trajetórias de lideranças brasileiras que leiam o livro do Israel Klabin e se aflijam com ele, se o desejarem, na mesma janela de observação que o leva a se debruçar sobre a angústia, o drama e a urgência. Ou não. Trata-se de um livro com muitas informações técnicas, científicas até sobre a chamada “crise ambiental”, que pode servir a uma ampla gama de públicos que buscam esse olhar brasileiro, ainda que ele se autodefina como “um homem do mundo”.
* Samyra Crespo é historiadora, secretária de Articulação Institucional do Ministério do Meio Ambiente; concebeu e publicou as pesquisas “O que o Brasileiro Pensa do Meio Ambiente”.
** Publicado originalmente no site Revista Eco21.




