Numa primeira leitura, o Atlas de Saneamento 2011, divulgado na quarta-feira 19 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apresenta um cenário otimista. Entre 2000 e 2008, houve aumento no número de municípios cobertos por saneamento básico em todo o país, fruto da reestruturação dos investimentos no setor a partir de 2003. A rede de distribuição de água, o manejo de resíduos sólidos (coleta e disposição de lixo) e o manejo de águas pluviais (controle de enchentes), por exemplo, existem pelo menos parcialmente em mais de 95% das cidades. Apesar dos dados positivos, o Brasil ainda está longe de disponibilizar para a totalidade da população um serviço sanitário estruturado e digno.
Em primeiro lugar, os números do IBGE mostram que o país engatinha em relação à coleta e ao tratamento de esgoto. Dos 5,5 mil municípios, pouco mais de três mil contam com rede coletora, o equivalente a 55,2% do total. Quando o assunto é tratamento do esgotamento, os números encolhem: 68,8% do total coletado passa por estações de tratamento, sendo o restante despejado em locais inapropriados, como córregos e rios. De acordo com o professor Léo Heller, do departamento de Engenharia Sanitária da UFMG, esse dado pode ser contestado. “O número dificilmente reflete a realidade, uma vez que a base de dados é montada em cima da informação declaratória que o próprio gestor da rede de esgoto (companhias estaduais e municipais ou mesmo empresas privadas) repassa para o IBGE.”
Além do mais, o estudo não leva em conta a abrangência da prestação do serviço, colocando no mesmo balaio as cidades que universalizaram essa infraestrutura e as que a disponibilizam apenas para alguns bairros. Por isso, o dado que melhor reflete a realidade brasileira é o de número de domicílios atendidos pela rede de esgoto, no caso 45,7%. “O déficit maior do Brasil ainda é o esgotamento sanitário, tanto em áreas urbanas quanto rurais”, explica Ana Lúcia Britto, pesquisadora do Observatório das Metrópoles e professora do programa de pós-graduação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional UFRJ.
Os mapas do Atlas também evidenciam fortes contrastes regionais no atendimento sanitário brasileiro. A rede coletora de esgoto do Norte, por exemplo, apesar de ter quase dobrado a quantidade de cidades assistidas, permanece a menor do país: apenas 13% dos municípios têm a infraestrutura. No Nordeste, esse índice é de 45% e, no Sudeste, de mais de 95%. Especialistas apontam diversas razões para as deficiências brasileiras na área de esgotamento. Desde a década de 1970, quando houve uma primeira tentativa de organizar sob a tutela federal os investimentos no setor, as obras priorizaram a expansão da rede de abastecimento de água. “É até compreensível, visto o enorme déficit que havia no Brasil naquela época. Mas hoje entendemos que o trabalho em saneamento precisa ser integrado, água e esgoto, até porque a família que passa a ter acesso a água gera mais esgoto”, diz Ana Lúcia. Além do mais, a construção e a operação de sistemas de esgoto tendem a ser mais caras. A própria Copasa, lembra Heller, companhia responsável pelo saneamento em Minas Gerais, possui 600 sistemas de água e 200 de esgoto. “Há oito anos, os sistemas de esgoto eram menos de 30.”
A pesquisadora do Observatório das Metrópoles destaca ainda outras deficiências brasileiras, que precisam ser contrapostas às principais conclusões do Atlas do IBGE para uma análise crítica da realidade nacional. Embora esteja presente em praticamente todos os municípios, uma grande quantidade de residências convive com abastecimento de água intermitente, ou seja, com prolongados períodos de interrupção. Segundo dados de 2007 do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade de Água para Consumo Humano (Sisagua), aproximadamente 3,2 milhões de domicílios sofrem com intermitência pelo menos uma vez por mês. Ana Lúcia aponta uma das razões da ampliação do acesso não ter sido acompanhada pela qualidade. “Embora tenha havido um aumento substancial de investimentos a partir do primeiro mandato do presidente Lula, muito dinheiro vai para a expansão do sistema de distribuição e pouco segue para a qualificação dos gestores a cargo da rede, o que melhoraria a qualidade do fornecimento.”
A crítica é compartilhada por Heller. “O dinheiro é muito direcionado para construir obras. Só que é preciso também pensar na operação do sistema, na capacitação dos profissionais e na qualidade da água oferecida.”
Os dois especialistas esperam que haja mais enfoque na gestão dos recursos empregados com a efetivação do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), elaborado no início deste ano e atualmente em análise na Casa Civil. O plano faz parte do esforço de reestruturação dos gastos no setor iniciado ainda no primeiro mandato petista, quando foram criados o Ministério das Cidades e a Secretaria Nacional de Saneamento Básico, vinculada à pasta. A partir do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), estabelecido em 2007, o aumento de aportes na área é expressivo. A quantidade de recursos não onerosos desembolsada saltou de 1,7 bilhão em 2006 para 2,9 bilhões (2007), 3,5 bilhões (2008) e 3,5 bilhões (2009).
O Plansab prevê, entre outras coisas, que a liberação de recursos pelo governo federal esteja condicionada à elaboração, por parte das prefeituras, de planos municipais que orientem os projetos municipais em saneamento. Apenas 12% das cidades brasileiras contam com esse tipo de legislação atualmente.
Uma vez em vigor, o Plano traçará metas a serem alcançadas nos próximos 20 anos para uma universalização estruturada de saneamento básico no Brasil. Para tanto, será necessária uma quantia na ordem de R$ 420 bilhões, sendo R$ 250 bilhões provenientes de investimentos da esfera federal. O restante deverá vir de aportes estaduais, municipais, da iniciativa privada e de órgãos internacionais de concessão de crédito, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A gerente de projeto do IBGE, Adma Figueiredo, reconhece que, a despeito dos avanços, persistem as disparidades regionais e problemas como a pouca abrangência das rede coletoras nas cidades. Entretanto, ela espera que os próximos estudos do Instituto mostrem resultados positivos mais contundentes, uma vez que passarão a englobar o período posterior a 2008, quando o dinheiro injetado via PAC foi mais expressivo. “De qualquer forma, muito do que precisa ser feito é de uma agenda do Século 19.”
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.