Ainda que se discorde tanto da existência da democracia racial, como do homem cordial no Brasil, não se pode negar a importância oriunda da fixação desses mitos. Com efeito, o Aurélio define o mito como uma “narrativa de significação simbólica, transmitida de geração em geração e considerada verdadeira ou autêntica dentro de um grupo, tendo a forma de um relato sobre a origem de determinado fenômeno ou instituição e pelo qual se formula uma explicação da ordem natural e social e de aspectos da condição humana”.
Desta forma, a importância do mito da democracia racial no Brasil exsurge à medida que serve, quando menos, para fixar a expectativa de conduta a ser seguida pelo homem médio que compõe a sociedade. Gera nas pessoas a expectativa – ainda que não corresponda integralmente à realidade – de que não há preconceito racial, de modo que qualquer conduta desviante desse padrão passa a ser observada com desprezo e antipatia. O mito, então, funciona como um desejo da sociedade sobre algo a ser concretizado, e não simplesmente como uma mentira.
No Brasil, diferentemente do que aconteceu em outros países racialistas, a força do mito da democracia racial fez com que jamais se tolerasse neste país qualquer tipo de limitação de direitos baseado na cor da pele. Não há qualquer proibição de que os negros dividam com os brancos a vizinhança em prédios luxuosos ou, então, que compartilhem da pobreza nas favelas. Essa, talvez, seja uma das funções do mito: incentivar, no imaginário social, a intolerância geral à discriminação. Manifestações isoladas de preconceito e de discriminação, por outro lado, sempre existirão, em qualquer sociedade, porque não se pode dominar a esfera do pensamento individual. Mas as leis e os costumes sociais no Brasil já agem incessantemente para combater que o preconceito se propague e se transforme em discriminação ou racismo.
Assim também entende Roberto DaMatta, que em debate realizado sobre as diferenças do sistema adotado no Brasil e nos Estados Unidos, expressou a necessidade de aprofundar a discussão no Brasil sobre a democracia racial, a fim de “ressaltar o fato de que a ideia de que temos uma ‘democracia racial’ é algo respeitável. Quanto mais não seja, porque, apesar do nosso tenebroso passado escravocrata, saímos do escravismo com um sistema de preconceito, é certo, mas sem as famosas ‘Leis Jim Crow’ norte-americanas, que implementavam e, pior que isso, legitimavam o racismo, por meio da segregação no campo legal. Não se trata – convém enfatizar para evitar mal-entendidos – de utilizar a expressão no seu sentido mistificador, mas de resgatá-la como um patrimônio (…)”.
Ainda nesse mesmo sentido pode-se destacar a pesquisa realizada no Distrito Federal pelo professor Jessé Souza, para aferir quais eram os valores políticos e os preconceitos dos seus habitantes. O resultado destacou nítida diferença entre o pensamento da classe mais abastada e o da classe mais pobre, no sentido de ser maior entre os mais pobres o preconceito relativo às mulheres, aos nordestinos, aos pobres e aos homossexuais, diminuindo o preconceito na proporção em que a renda aumentava. Por sua vez, no que concerne ao preconceito de cor, tal foi o único cujo repúdio, de forma explícita e majoritária, distribuiu-se entre todas as classes, sem diferença.
A partir dessa experiência, concluiu o renomado professor: “A democracia racial é, em alguma medida, um projeto acalentado por todos os extratos sociais. A sua distribuição entre as várias classes sociais, em um contexto de extrema divisão socialmente determinada com relação a outros preconceitos e valores sociais básicos, mostra, sobretudo, sua função de cimento ideológico da unidade comunitária. Poucos são os valores que logram essa posição, e sua força é enorme, visto que se referem à autoestima e à necessidade de identidade de todo um povo. Não aproveitar o potencial desses mitos responsáveis pela coesão social é pouco sábio. Negá-los como pura mentira é menos do que sábio, é perigoso. É escolher o isolamento do discurso do ressentido que se apoia na instável eficiência do aproveitamento político do complexo de culpa”.
Relevante apontar também alguns dados obtidos em pesquisa realizada em 2003 pela Fundação Perseu Abramo, em parceria com a fundação Rosa Luxemburgo Stiftung, intitulada “Discriminação Racial e Preconceito de Cor no Brasil”. Na ocasião, 96% dos brasileiros declararam não ter preconceito, de modo que apenas 4% revelaram ser preconceituosos. Ainda que não corresponda integralmente à verdade, esta pesquisa traz um dado inegável: há, no Brasil, um constrangimento social fortíssimo em se assumir preconceituoso. E isto é um patrimônio cultural que não podemos desperdiçar. Ignorância é achar que ter orgulho de ser racista é melhor do que o preconceito velado e disfarçado. O orgulho racista não fica apenas no âmbito das ideias, parte para a ação. Isto faz toda a diferença no que concerne à forma como nos identificamos como povo.
No Brasil, pode-se afirmar que institucionalmente há manifesto repúdio a qualquer ataque à dignidade dos negros. Combate-se, todo o tempo, a discriminação, seja por meio da educação, seja com programas de governo e propagandas, tudo objetivando a criação de um pensamento plural, tolerante, livre de preconceitos, consolidando desde as gerações mais jovens a ideia de que há heróis de todas as cores, e que se deve promover sempre a integração de todos em uma única identidade nacional.
E é nesse sentido que deve ser compreendida a importância da fixação do mito da democracia racial no consciente coletivo brasileiro. Desse modo, o mito servirá como freio na conduta humana, fixando o paradigma do comportamento que se espera do homem médio e o modelo de atitude e das reações que devem ser tomadas e seguidas.
Desse modo, atribuir toda a culpa das desigualdades sociais sofridas pelo negro ao preconceito e à discriminação é uma redução simplista do problema. Apesar de existentes, o preconceito e a discriminação no país não serviram para impedir a formação de uma sociedade plural, diversa e miscigenada, na qual os valores nacionais em grande parte se identificam com os valores da comunidade negra. E, sobretudo, não serviram de impedimento para que muitos pardos e pretos conseguissem alcançar postos de destaque nos mais amplos espectros sociais, como na política, na magistratura, na universidade, nos esportes e nas artes. Não é à toa que já tivemos o nosso primeiro presidente negro no Brasil, Nilo Peçanha, no ano de 1909, exatos cem anos antes da eleição do Barack Obama.
No Brasil, a existência de valores nacionais, comuns a todas as cores parece quebrar o estigma da classificação racial maniqueísta. Encontram-se elementos da cultura africana em praticamente todos os ícones do orgulho nacional, seja na identidade que o brasileiro possui, seja na imagem do país difundida no exterior, como samba, carnaval, futebol, capoeira, pagode, chorinho, mulata e molejo.
Existem valores nacionais brasileiros que são comuns a todos os tipos que formam o povo. Por não ter havido a separação das pessoas por causa da cor, foi possível criar um sentimento de nação que não distingue a cultura própria dos brancos da cultura dos negros. A unidade do Brasil não depende da pureza das raças, mas antes da lealdade de todas elas a certos valores essencialmente pan-brasileiros, de importância comum a todos.
Assim, o problema da relativa falta de integração do negro às camadas sociais mais elevadas pode ser resolvido no Brasil sem que desperte manifestações de ódio racial extremado ou violento. Isso somente se torna possível porque, no âmbito social, a nossa comunidade foi capaz de se desenvolver a partir da interpenetração das culturas as mais diversas e, na esfera biológica, houve uma forte miscigenação entre os grupos de todas as cores. Tentar implementar ações afirmativas em que a raça seja o único critério levado em consideração poderá, de alguma forma, afetar esse relativo equilíbrio existente no Brasil e, em vez de promover a inserção dos negros, criar esferas sociais apartadas, daqueles que são/foram beneficiados pelas medidas e dos que não são/não foram.
Não podemos incidir no erro de querer mitigar as diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos. Muitos autores que escreveram sobre as ações afirmativas procuram destacar que as diferenças entre os países residem tão-somente na forma de encarar o problema: os Estados Unidos fizeram a opção por não usar de subterfúgios, atacando diretamente a questão, enquanto, no Brasil, aparentemente não se discute o tema e, portanto, se difunde a ideia de que vivemos um paraíso racial.
O raciocínio realizado é sofístico e válido apenas aparentemente. As diferenças existem, são muitas, e por isso ensejam formas diferentes de encarar a realidade. O fato de em ambos existir preconceito e discriminação não significa que a origem do preconceito esteja no mesmo fato: a ancestralidade africana. No Brasil, muitas vezes a ascendência africana pode ser suavizada, outras vezes esquecida, seja por questões econômicas — a assertiva de que no Brasil negro rico vira branco e pobre branco vira negro — seja pelo fenótipo apresentado — a chamada válvula de escape do mulato.
Devemos observar o Brasil como exemplo para o mundo do Século 21, quando observamos tantos conflitos étnicos, baseados em supostas diferenças entre os seres humanos. Qual seria mesmo a diferença essencial entre um judeu e um alemão? Entre um árabe e um judeu? Enfim, o convívio harmônico entre brasileiros natos e imigrantes das mais diferentes culturas, religiões e cores é um ativo absolutamente estratégico nesse século de tantos conflitos de culturas, povos e religiões. As tentativas de racialização por aqui colocam em risco justamente o que temos de diferente dos outros países. É isso que queremos para o Brasil?
* Roberta Fragoso Kaufmann é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tem MBA em Direito Econômico pela Fundação Getulio Vargas (FGV), é mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), advogada com ênfase em Supremo Tribunal Federal (STF) – Controle de Constitucionalidade, e professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo na Escola Superior do Ministério Público e na Escola da Magistratura, ambas no Distrito Federal. É autora de Ações Afirmativas à Brasileira: Necessidade ou Mito? (Livraria dos Advogados, 2007).
** Publicado originalmente no site do Instituto Millenium.