O trabalho é virtual, mas o mundo é real
Livro do professor e sociólogo Ricardo Antunes reúne ensaios sobre as transformações do mercado de trabalho. Numa passagem de O Capital, Karl Marx afirma que a manufatura separou o trabalhador dos meios de produção, assim como quem aparta o caracol da sua concha.
Livro do professor e sociólogo Ricardo Antunes reúne ensaios sobre as transformações do mercado de trabalho.
Numa passagem de O Capital, Karl Marx afirma que a manufatura separou o trabalhador dos meios de produção, assim como quem aparta o caracol da sua concha. Ocorre que tal molusco, lembra o autor, não consegue sobreviver sem sua proteção natural. A partir da imagem criada por Marx, o sociólogo Ricardo Antunes, professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, definiu o título do seu mais novo livro, O caracol e sua concha – ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. A obra, esta semana pela editora Boitempo, dá continuidade às suas reflexões sobre o mundo do trabalho, registradas em outros dois livros: Adeus ao trabalho? (1995) e Os sentidos do trabalho (1999). Na mais recente produção, Antunes, considerado um dos mais destacados sociólogos marxistas da atualidade, analisa as transformações ocorridas nesse universo e as consequentes implicações nos planos social e político.
Implicações políticas e sociais são analisadas
O caracol e sua concha reúne 12 ensaios escritos por Ricardo Antunes entre os anos de 2000 e 2005, sendo um deles inédito, produzido para a apresentação da aula para a obtenção do título de professor titular no IFCH. “Todos esses trabalhos compõem um projeto financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), intitulado Para onde vai o trabalho?”, afirma o autor. No livro, o sociólogo aborda diversos temas relacionados à questão do trabalho no capitalismo contemporâneo. O primeiro deles diz respeito à crise da sociedade do trabalho. O docente da Unicamp discute as implicações da chamada sociedade do conhecimento e da informação no âmbito do trabalho.
De acordo com ele, num cenário de competição global, as empresas não somente se apropriam da dimensão manual do trabalho, como nas épocas taylorista e fordista, mas também do seu caráter intelectual. “Atualmente, para qualquer corporação é fundamental esse tipo de apropriação, visto que o saber do trabalhador normalmente se traduz em maior produtividade e lucro”, afirma. Não por acaso, registra Ricardo Antunes em seu livro, a Toyota, uma das maiores fabricantes de veículos do mundo, utiliza um slogan que em português significa “Bons pensamentos significam bons produtos”. “Ou seja, é preciso fazer com que a classe trabalhadora pense e, dentro do universo estrito das empresas, produza maiores ganhos.”
Uma consequência desse modelo, reforça o sociólogo, é naturalmente o aumento da produtividade e do lucro. Mas junto com este reflexo surge um outro, que é a precarização do trabalho. Isto ocorre, segundo Ricardo Antunes, em razão do que ele classifica de “informalização” do trabalho, aqui incluídas as alternativas cada vez mais utilizadas pelas corporações, como a terceirização e as contratações temporárias ou parciais, com a respectiva redução de direitos. “Este processo foi analisado recentemente por uma cientista social, Ursula Huws, que denominou a classe trabalhadora atual com o termo cybertariat, que significa ‘proletariado da era da cibernética’. Conforme o título de seu livro, trata-se do trabalho virtual realizado no mundo real. Hoje, a pessoa tem trabalho, mas amanhã pode não ter. Em razão da globalização, uma empresa instalada em Campinas pode ser transferida de um dia para o outro para as Filipinas, por exemplo. E o trabalhador poderá ser informado disso quando chegar para bater o ponto”, explica.
Em O caracol e sua concha, o autor destaca que esse movimento não implica o fim do trabalho, como chegou a ser defendido por alguns segmentos, mas sim sua transformação. Hoje, o trabalho assumiu uma forma completamente diferente daquela de há 40 ou 50 anos. “Precisamos entender as formas contemporâneas da agregação do valor-trabalho. Atualmente, a mais-valia não é extraída apenas do plano material do trabalho, mas também do imaterial”. Valendo-se da imagem de um pêndulo, Ricardo Antunes defende em seu livro a tese segundo a qual o mundo do trabalho oscila entre a sua dimensão perene e a supérflua. É perene na medida em que uma parcela da população consegue se manter no mercado de trabalho, cumprindo jornadas cada vez maiores e realizando múltiplas atividades.
Mas também é supérfluo, dado que cada vez mais pessoas vivem a condição do desemprego estrutural, aquele em que a vaga do trabalhador foi substituída por máquinas ou processos produtivos mais modernos, ou foram empurradas para a informalidade e a precariedade. “Este é o quadro que eu procuro mostrar no livro, ou seja, o mosaico de forma que configura a classe trabalhadora atual. Isto é muito diferente das teses que tiveram um certo impacto uma década e meia atrás, que diziam que o trabalho estava acabando. Não, o que existe é uma nova morfologia do trabalho”, insiste. Se o trabalho assumiu uma forma diversa da conhecida por nossos avós, provocando um novo recorte em relação à classe trabalhadora, é natural que essa transformação traga impactos para as esferas social e política.
No livro, o professor do IFCH faz uma reflexão importante sobre os caminhos que a classe trabalhadora pode trilhar em busca de seus direitos e de uma sociedade menos destrutiva. Ele discute, por exemplo, a representatividade exercida pelos sindicatos e partidos políticos. No Brasil, entende Ricardo Antunes, este caminho mostra-se especialmente desafiador, por conta do escândalo envolvendo o Partido dos Trabalhadores (PT), agremiação que se apresentava como detentora da ética e defensora de uma sociedade mais humanizada. “Infelizmente, o PT não só abandonou o seu ideário socialista, como se mostrou capaz de aprofundar a corrupção política no país. Com a falência e a senilidade precoce do PT, criou-se um espaço político e ideológico que precisa ser preenchido”, analisa.
De acordo com ele, com o fracasso dos partidos comunistas tradicionais e da social democracia no século passado, o Século 21 está exigindo uma resposta à seguinte pergunta: queremos continuar vivendo numa sociedade destrutiva ou vamos buscar modelos alternativos? “Penso que não podemos recuperar a experiência do século passado. Nem tampouco, no caso brasileiro, requentar o PT e o PSDB e seguir em frente. Creio que isto nos oferece o desafio de repensar e refundar a esquerda no país. Há quem diga que o socialismo morreu, mas eu discordo frontalmente dessa análise. Eu afirmo que o socialismo não morreu porque seu processo de transição não chegou a se consolidar. O Psol (Partido Socialismo e Liberdade) surge, então, como uma possibilidade para o exercício desse esforço. Alguns dirão que essa não é uma alternativa, outros estão participando dessa iniciativa política coletiva, pelas possibilidades que ela oferece. Penso que a refundação da esquerda é um empreendimento a ser feito. Resta discutir qual a melhor maneira de conduzi-lo.”
O livro O caracol e sua concha – ensaios sobre a nova morfologia do trabalho tem 136 páginas e estará disponível nas livrarias brasileiras a partir da segunda quinzena de agosto. O preço de capa ainda não foi definido. Os interessados podem obter informações ou comprar exemplares diretamente da editora, por meio da home page www.boitempo.com. A apresentação do livro foi feita pelo professor Sedi Hirano, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
* Fonte: Jornal da Unicamp.
** Publicado originalmente no site Adital.




