Hoje tropecei num pufe que, além de não gemer, como eu, ainda ficou me encarando com sobrancelhas irritadas. Então me lembrei do primeiro dia em que, finalmente, depois de quatro anos de um arrocho financeiro injusto e cruel, nos instalamos na casa nova. Nem tudo estava pronto, mas urgia entregar a casa de onde sairíamos para o novo proprietário. Você pode já ter passado por experiência semelhante e vai entender meu drama. Primeiro descarrega a mudança, depois a gente vê como fica. Para tudo existe um jeito.
Depois de uma noite terrível, com barulhos estranhos e suspeitos a cada dez minutos, com latidos inteiramente novos para nossos ouvidos, depois de bater com a cabeça na parede porque o banheiro ficava para o outro lado, acordei de manhã exultante com o nascer do Sol, que me livrava da obrigação de permanecer deitado naquele lugar incrível, fingindo que descansava.
Não havia água ainda na torneira e pensei que poderia muito bem ser o registro fechado, mas não encontrei a peça circular, aquela coroazinha de ferro, com que geralmente são abertos esses aparelhos. Não foi muito difícil imaginar-me em plena floresta caçando javalis, ou preás, sei lá, algum animal caçável, e fazer minhas abluções nas águas límpidas de um tambor, que podia passar por um regato murmurante de águas cristalinas lambendo pedras escuras.
Pus um copo de leite no microondas e liguei, mas o artefato nem se dignou olhar-me, tão morto como se nunca tivera nascido. Também não foi difícil tomar o leite frio mesmo. Como precisasse escrever uma crônica, sentei-me em frente ao computador, que só funciona movido a eletricidade. Que ainda não fora ligada. Procurei minha velha Olivetti, mas toda desdentada pela falta de uso, não me serviu fielmente, como eu supunha: completamente aposentada.
Começando a ficar desesperado, telefonei para um amigo, que talvez pudesse ajudar-me. E quem disse que o telefone já estava ligado? Então sim, então me senti imerso no mais profundo isolamento. Eu realmente não estava mais no mundo. E era preciso enviar a crônica no mesmo dia. Sempre fizera isso com o auxílio da internet, que além desse tipo de trabalho, costuma pôr-me em contato com os amigos que cultivo em vários rincões do país.
Saber que não poderia contar com os ombros eletrônicos de meus amigos, ombros onde me lamentaria da dependência que vivemos desta verdadeira parafernália de artefatos tecnológicos, ter a consciência disso foi o que definitivamente me esmagou o ânimo, como se esmaga a pulga do Rex entre as unhas. E não poder ouvi-los foi ainda pior, porque eles sempre têm o que dizer, e o que dizem é sempre o meu roteiro para esta viagem difícil pelo mundo a fora.
Minha mulher sugeriu que abandonássemos tudo e nos embrenhássemos na floresta, deixando tudo para trás e adotando um modo de vida inteiramente natural. Cheguei a me entusiasmar com a ideia, mas me lembrei do Micardis, para controle da pressão, e da coceira no rosto, quando a barba me cresce um pouco e desisti de adotar a vida de “bom selvagem”. O Rousseau que me perdoe, mas ainda prefiro viver na sociedade que me corrompe. Não sei até quando, por isso imagino que será apenas até o dia em que esses objetos todos se revoltarem contra nós. Será o fim de todo sofrimento.
* Menalton Braff é ex-professor, contista, romancista (com 18 obras publicadas) e cronista.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.