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Ocupe Wall Street após a utopia igualitária

O órgão central da ocupação é a assembleia geral, que acontece uma vez por dia e está aberta ao debate. Foto: Sam Lewis/IPS

Nova York, Estados Unidos, 26/10/2011 – O movimento Ocupe Wall Street enfrentou pressões políticas, clima inclemente, violência policial e mais de mil prisões, e continua crescendo no distrito financeiro novaiorquino onde nasceu há um mês e meio. Também se espalhou para cem cidades dos Estados Unidos e de muitos outros países, vinculando-se a movimentos populares da Europa e do mundo árabe e com organizações comunitárias de longa data.

O Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street) tem um espaço em todos os noticiários do mundo, e são inúmeras as análises sobre seu possível impacto político. Contudo, sua organização, estrutura e funcionamento internos são tão ou mais interessantes. O interesse se concentra no que ocorre no Parque Zuccotti, antes chamado Liberty Plaza, no coração do distrito financeiro, embora cada mobilização seja autônoma e se baseie em questões específicas de cada lugar.

O movimento é aberto, em sentido literal e figurado, e voluntário. As pessoas se aproximam e aderem, seja por acreditar em sua mensagem, que o sistema econômico dos Estados Unidos está viciado e precisa de uma mudança radical, ou porque é vítima dele. Em qualquer caso, o sentimento de comunidade é palpável. “Sua estrutura é realmente aberta, qualquer um pode entrar”, disse Uruj Sheik, que integra o movimento desde seu começo. “Basta aproximar-se e assumir um papel. Pode-se participar de um comitê ou apresentar uma ideia e organizar as pessoas em torno dela”, explicou.

Tudo é gratuito na ocupação. Isto pode parecer óbvio e sem importância, mas a crítica essencial dos ativistas ao sistema capitalista é o peso do dinheiro, necessário para toda transação que se faz na vida possível e desfrutável, desde o alimento e a assistência médica até um espaço para viver ou descansar, se comunicar, educar ou se divertir. O movimento não manuseia dinheiro, salvo o das doações. As pessoas podem ficar, comer, beber, relaxar, ouvir música, ler, falar de política, dormir ou receber os primeiros auxílios sem se preocupar com o dólar. Para os manifestantes, a igualdade não implica que todos tenham a mesma quantidade de dinheiro, mas que tenha o que precisam.

Lily White, técnica em atendimento sanitário de emergência, criou o comitê médico. “Instalei a barraca no segundo dia de mobilização, quando éramos poucos e só tínhamos uma sacola de plástico com suprimentos variados”, disse à IPS. “Agora temos pessoal médico e de enfermaria e duas barracas com suprimentos de qualidade para atender como em uma clínica ou sala de emergência, onde os pacientes recebem atenção rápida e gratuita”, acrescentou. Segundo White, “a maioria das consultas são por golpes de cassetete dos policiais ou sequelas do gás pimenta que utilizam, mas também atendemos outros problemas ou ferimentos. Agora que está frio, tentamos evitar a hipotermia”, ressaltou.

A estrutura e o processo de decisão também se assentam em bases igualitárias. Todo mundo opina, ninguém fica de fora. O órgão principal do movimento é a assembleia geral, que se reúne uma vez ao dia. É uma reunião aberta, de discussão e o principal espaço de decisão. E a maioria das ações é executada nos comitês. Qualquer pessoa pode formar um ou unir-se aos que já existem. Os horários locais dos encontros são divulgados todas as manhãs.

“No começo pode parecer difícil porque há muita gente por todo lado, mas logo a pessoas se dão conta de que existe um sistema funcionando”, disse Shlomo Roth, originário da cidade canadense de Toronto. “O ambiente participativo parece estranho porque nascemos em um mundo que nos acostuma a receber ordens, isto é libertador”, acrescentou. “Viajava com minha família e quase nos chocamos com a ocupação, gostamos e perguntamos o que havia para fazer”, contou Roth à IPS. “Perguntaram minha especialidade e me ofereceram várias tarefas. É muito aberto e qualquer um pode participar”, acrescentou.

Há, entre outros, um comitê de alimentação, destinado a armazenar, comprar e distribuir comida; de salubridade, encarregado da limpeza e da higiene; médico, que coleta suprimentos, recruta profissionais, dá atenção física e psicológica e treinamento; e de assistência, que organiza e distribui sopa, lençóis, colchas e outros elementos doados. Além disso, existem o comitê de segurança, que cuida para que o ambiente seja seguro para todos, e o de facilitação, que reúne e treina pessoas para atuarem como facilitadores na assembleia geral.

Os comitês médico e de alimentação têm uma importância particular porque não só tornam possível que as pessoas vivam no acampamento como também oferecem serviços que hoje a sociedade norte-americana não proporciona, dessa forma pondo em relevo uma forma social alternativa. “Esta é uma atenção médica que nosso país poderia oferecer à população, e a montamos na rua em menos de um mês”, disse White.

Também há comitês externos para organizar ações, criar e se relacionar com os meios de comunicação, melhorar a presença na internet, coordenar com a comunidade e os sindicatos, etc. Depois, há grupos informais de arte, música, meditação, teatro de rua, yoga e todo tipo de atividade que contribua para uma forma de vida holística. Cinco semanas após seu surgimento, o Ocupe Wall Street é uma comunidade regida por instituições e ações baseadas em princípios solidários e igualitários. Como movimento de protesto, a tática de ocupação é um sucesso por sua presença constante e por funcionar como centro de organização de atividades.

E, tão importante quanto isso, o espaço ocupado oferece aos seus participantes a ocasião de criar um microcosmo social no qual gostariam de viver. Na medida em que o movimento cresce, é claro que esta nova sociedade deixa marcas nos que ressentem os fracassos da sociedade norte-americana. Assim disse Sheik: “Estamos desmantelando o capitalismo e construindo algo melhor aqui mesmo”.

Há três papéis previstos na assembleia geral. O primeiro é facilitar: guiar a discussão e mantê-la no tema escolhido e em um tom de respeito; o segundo é levar a lista de oradores e dar a palavra, priorizando os que não falaram; o terceiro é cumprido por todos os demais. Na assembleia geral, “todos os demais” têm um papel: possíveis oradores, votantes e “microfones humanos”.

Usar megafone eletrônico exige permissão das autoridades. E as enormes assembleias gerais são feitas em espaços abertos com intenso ruído urbano de fundo. O microfone humano do movimento é a resposta ao problema: uma vez que alguém tem a palavra, transmite sua mensagem em frases de três a dez palavras, depois espera enquanto os que ouviram transmitam aos que estão mais distante. Assim, todos ouvem o orador, e os que falam devem fazê-lo com lentidão e clareza.

As decisões nas assembleias do Ocupe Wall Street são tomadas por “consenso modificado”: em lugar de 50% mais um dos votos, exigi-se apoio esmagador para considerar algo aprovado. Ao ser apresentada uma moção, o facilitador sente a temperatura observando a linguagem de sinais da multidão. Se todos, ou quase todos, fazem com a mão o sinal de “gostei”, a moção é aprovada. Se os “gostei” parecem ser em número igual aos “não gostei”, tem início a discussão.

Depois do debate se vota. Mediante sinais com a mão vota-se a favor, se expressa abstenção ou se bloqueia. Os participantes são exortados a usarem o bloqueio somente se estiverem abertamente contra uma proposta, a ponto de abandonarem a ocupação da praça caso seja aprovada. Uma certa quantidade de bloqueios – entre duas e cinco pessoas, segundo o tamanho da assembleia – ou uma esmagadora quantidade de abstenções congelam uma proposta. A primeira coisa aprovada pela assembleia geral do Ocupe Wall Street foi um código de conduta para a ocupação, garantindo o respeito devido a cada participante e aos seus pertences. Envolverde/IPS