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OMC: Bali enfrenta o contraponto entre segurança alimentar e comércio

Segundo dia de sessões da conferência ministerial da OMC em Bali, na indoesia. Foto:  WTA/ANTARA
Segundo dia de sessões da conferência ministerial da OMC em Bali, na Indonésia. Foto: © WTA/ANTARA

 

Bali, Indonésia, 6/12/2013 – A nona reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio, que termina hoje em Bali, na Indonésia, é uma luta aberta entre países que procuram redes de segurança social para centenas de milhões de pobres e os que insistem em medidas para que o Sul em desenvolvimento facilite as importações. Essas duas forças se chocaram na reunião plenária do dia 3. “Milhões de pessoas dependem da segurança alimentar e milhões mais estão interessadas em ver o que será feito quanto a esse assunto vital”, afirmou a chanceler do Quênia, Amina Mohammad.

“Na África há milhões de pessoas que precisam de segurança alimentar e esperam que os ministros em Bali sejam sensíveis, como comunidade internacional, aos problemas do sustento e da sobrevivência da maioria das populações vulneráveis”, destacou Amina. A ministra exortou seus colegas da área do comércio a “conseguirem uma solução para passar a mensagem de que ouvimos o que estão dizendo, que queremos apoiar sua causa e que reconhecemos a segurança alimentar como um tema crucial”.

O ministro do Comércio da Índia, Anand Sharma, afirmou no plenário que “a segurança alimentar é essencial para quatro bilhões de pessoas e é uma importante meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)”. O chamado pacote de Bali inclui a obrigação de restringir os subsídios à produção agrícola nacional ao máximo de 10% do valor total para os países em desenvolvimento, embora preveja um período de transição (“cláusula de paz”) de quatro anos.

A Índia exige que a exceção não tenha um limite temporal. Segundo cálculos da OMC, os agricultores indianos estão obtendo 24% mais de apoio para seus cultivos segundo o valor de produção estimado para o período 1986-1988 no Acordo sobre Agricultura. Contudo, entre 1986-1988 e 2013 os preços do arroz e do trigo subiram mais de 300%, e o de insumos, como os fertilizantes, cresceram 480% no mesmo período, segundo números do Banco Mundial. Além disso, Nova Délhi teme que uma das principais políticas do governo fracasse devido às novas regras da OMC.

Em setembro, o parlamento indiano aprovou uma lei que estabelece a distribuição de alimentos subsidiados a dois terços da população do país, cerca de 820 milhões de pessoas. “A segurança alimentar não é negociável”, destacou Sharma, afirmando que a Índia não aceitará o mecanismo provisório proposto (que daria certa flexibilidade a alguns países para aplicar o Acordo sobre a Agricultura da OMC), porque não proporciona certeza legal. As existências de grãos adquiridas pelo Estado para garantir a segurança alimentar devem ser respeitadas, acrescentou.

À véspera da reunião de Bali, que acontece de 3 a 6 deste mês, a Índia, juntamente com Bolívia, Cuba, Quênia, África do Sul, Venezuela e Zimbábue, exigiu novas disposições para proteger os programas de existências públicas desses países, diante das falidas normas comerciais. As atuais regras da OMC sobre agricultura foram desenhadas em grande parte pela União Europeia e pelos Estados Unidos durante a Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), entre 1986 e 1994.

Enquanto permitem enormes subvenções no Norte, são indiferentes às preocupações dos países com grandes populações no Sul. “As antiquadas normas da OMC devem ser corrigidas”, afirmou Sharma. O mais importante é que “qualquer acordo comercial esteja em harmonia com nosso compromisso comum de eliminar a fome e garantir o direito à comida, que aceitamos como parte da agenda dos ODM”, enfatizou o ministro indiano.

O debate central é se países como Índia e Quênia, que têm grandes programas estatais de compra de alimentos para garantir a segurança alimentar, particularmente de cereais de pequenos agricultores aos quais garantem preços mínimos, devem desafiar a legalidade de normas inconsistentes com as atuais realidades econômicas globais. Nos últimos 15 anos, os preços dos alimentos essenciais subiram mais de 250%.

A Índia e os demais membros do Grupo dos 33 (G-33), coalizão de 46 países em desenvolvimento liderada pela Indonésia, apresentou argumentos de peso para mudar certos parâmetros do atual Acordo sobre Agricultura da OMC. O G-33 pede que sejam atualizados os preços de referência externos, ancorados em valores da década de 1980, para que reflitam as atuais cotações mundiais. A coalizão também exige que se leve em conta a inflação de cada país quando da avaliação do cumprimento das normas.

Os países industrializados, liderados pelos Estados Unidos e pela UE, se opuseram veementemente, no ano passado, às demandas do G-33, e declararam que nunca permitiram mudança alguma nas normas. No entanto, depois de intensos ruídos de sabres e ameaças, os países do Norte se retrataram de sua postural inicial e prometeram uma resposta mais flexível.

Então, incluíram a “cláusula de paz” no pacote de Bali, e que concederia uma flexibilização temporária, não superior a quatro anos. Embora aceitassem continuar com a discussão, não se comprometeram a encontrar nenhuma solução permanente. Os países industrializados pressionam por um novo acordo sobre facilitação do comércio, que inclui mudanças de grande envergadura nos procedimentos aduaneiros e de importações.

O fechamento do acordo em Bali permitiria aos países em desenvolvimento uma economia de US$ 441 bilhões, assegurou o comissário de Comércio da UE, Karel de Gucht. O convênio de facilitação comercial é “uma via essencial para ajudar muitos países a reduzir a burocracia em suas fronteiras, bem como a serem mais eficientes e efetivos no comércio”, pontuou.

Por sua vez, a Câmara de Comércio Internacional afirmou que um acordo desse tipo garantiria ganhos de aproximadamente US$ 1 trilhão para os países em desenvolvimento e menos avançados. O diretor-geral da OMC, o brasileiro Roberto Carvalho de Azevêdo, também expressou seu apoio, nos últimos dias, ao pacote de Bali apresentado pelo Norte. Mas os países industrializados não apresentaram evidências conclusivas de que a facilitação do comércio traga tais benefícios.

“Lamentavelmente, esses números dependem de muitas hipóteses injustificadas”, escreveu Jeronim Capaldo, do Instituto de Desenvolvimento Global e Ambiente da Universidade Tufts, dos Estados Unidos. “É difícil entender como ganhos tão incertos e uma distribuição desigual dos custos (que estão subjacentes nas estimativas) podem justificar que sejam desviados recursos para a facilitação do comércio em lugar de destiná-los a políticas tão necessárias como o fortalecimento de redes de segurança social”, afirmou Capaldo.

A reunião de Bali evidencia um conflito latente. Os participantes o descreveram como um choque entre duas argumentações, a que defende a segurança alimentar, liderada pela Índia, e a que promove a facilitação do comércio, defendida por países industriais e algumas potências emergentes do Sul. Por sua vez, o ministro do Comércio da África do Sul, Rob Davies, destacou desequilíbrios no pacote de Bali, particularmente sobre a facilitação do comércio.

A chanceler do Quênia disse que concorda “com a Índia, e todos queremos uma solução. Tenho esperança de que se encontre a linguagem para avançar nesse tema. Não creio que alguém esteja interessado em que essa reunião ministerial deixe a mensagem de que não podemos trabalhar em equipe e encontrar a forma de atender milhões de pessoas pobres. É importante conseguirmos um resultado concreto”.

A sorte da conferência está por um fio. Em algumas horas o mundo saberá se é possível encontrar uma solução para a insegurança alimentar e se o pacote de Bali acaba torpedeado e afunde por diferenças irreconciliáveis. Envolverde/IPS