De tempos em tempos a mídia noticia uma série de atos decorrentes de preconceito. Melhor, de violência provocada pelo preconceito. Há alguns anos, foram os crimes contra indígenas e indigentes moradores de rua, incendiados por jovens bem-nascidos. Depois, estupro de moças e mulheres da classe C também por jovens pertencentes a classes sociais abastadas. Há cerca de um ano e meio, foi o caso de Geisy Arruda, a aluna da Uniban agredida em razão da forma de se vestir. Mais recentemente, soubemos dos jovens que, num rodeio, pulavam sobre moças gordas como se essas fossem gado.
Publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo, há relatos sobre discriminação raivosa contra alunos que ingressaram na universidade, ou por meio de bolsas destinadas a estudantes de baixa renda, ou, ainda, pelo programa de cotas raciais. Estes estudantes são alvos de exclusão, desprezo, ofensas pessoais e agressões verbais dirigidas à sua cor, aparência, roupas, à expressão de suas ideias, seu tipo de cabelo e, inclusive, são acusados de trazerem para a instituição um rebaixamento da qualidade de ensino.
Os casos mais recorrentes e divulgados atualmente são os ataques a homossexuais. As tevês e os jornais mostraram, diversas vezes, rapazes agredindo com uma lâmpada fluorescente um jovem, na Avenida Paulista, pelo simples fato de ele ser gay. A ONG Safernet tem dados que acusam um aumento de denúncias homofóbicas na internet, na proporção de 88% de 2009 para 2010, enquanto as denúncias de racismo, no mesmo período, caíram 57% e as de neonazismo 65%.
O Estadão informa que entre os sites de relacionamento nas redes sociais há aqueles criados especialmente com conteúdo homofóbico, nos quais não apenas se expressa o preconceito, mas se discute onde e como matar homossexuais.
O Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate à Homofobia da Prefeitura de São Paulo elaborou um mapa de lugares de agressões, indicando que 50% destas ocorrem no centro expandido de São Paulo, que inclui a região da Paulista. Informa, também, e isto é preocupante, que boa parte dos agressores conhece sua vítima: 16% são da própria família e 38% são conhecidos, vizinhos, colegas de trabalho.
Construções sociais
Politicamente incorretos e indesejados, preconceitos são inevitáveis. Eles derivam do fato de que os seres humanos existem construindo interpretações sobre as mais variadas situações e pessoas e, para tanto, se apoiam em seus costumes e crenças. Daí, o que contraria e se diferencia de tais crenças, num primeiro impulso é contestado e recusado.
Estas interpretações, no entanto, não são propriamente preconceitos.
Para se transformarem em um preconceito, as interpretações precisam ser aceitas por uma comunidade e permanecer em seu seio por tempo suficiente para ser imediata e irrefletidamente reconhecidas como verdades incontestáveis. O preconceito é uma interpretação coletiva e duradoura.
A força de um preconceito reside justamente no fato de ser mantido, em conjunto, por uma comunidade. Um preconceito depende de que várias pessoas acreditem nele a ponto de serem mobilizadas por ele. Deste modo, costumam se instaurar como índices da cultura de uma comunidade política (meu bisavô, português, não queria o casamento de sua filha com meu avô por ele ser italiano, a ponto de trancá-la em casa para impedir o namoro. Fracassadas todas as investidas, não compareceu ao casamento deles e sumiu por uma semana).
O que mais assusta e inquieta no preconceito é que ele mobiliza vigorosamente as pessoas, promovendo, invariavelmente, alguma forma de agressão. Quando movidas pelo preconceito, as pessoas e as comunidades são, normalmente, raivosas e intolerantes. A intolerância religiosa é um exemplo bem conhecido dos nossos tempos, assim como a intolerância ideológica e a racial. E bem conhecidos são as destruições, o terror e a cadeia ofensiva que desencadeiam.
Extermínio natural
O que tem provocado perplexidade, hoje, é que os ataques preconceituosos têm sido acompanhados por uma espécie de desfaçatez. Os agressores agem como se a violência praticada fosse uma reação natural e justificada intrinsecamente à sua crença.
Penso que o cinismo da violência preconceituosa é herança dos movimentos e governos totalitários que eclodiram no Século 20. O nazismo na Alemanha, o stalinismo na Rússia, o comunismo na China viam o extermínio como o mais natural recurso – fosse dos inimigos do regime, fosse dos indivíduos e/ou “raças impuras”, fosse das “classes agonizantes”.
Entendiam que nas leis da Natureza, ou nas leis da História, estavam inscritos, para um futuro distante, uma raça humana perfeita (a ariana), tanto quanto uma sociedade sem classes. Também o conhecimento dessas leis mostrava que nesse destino último, as pessoas doentes física e psiquicamente, as raças impuras como a dos judeus – no caso do nazismo –, e as classes abastadas, imperialistas – no caso do comunismo –, desapareceriam.
Indivíduos, raças e classes que não existiriam no futuro, comprovavam que elas já não deveriam ter existido no passado, nem seriam aceitas no presente. A previsão da sua futura extinção não só justificava, mas exigia que medidas que visassem sua eliminação fossem tomadas. Portanto, o extermínio nem sequer era visto como um mal necessário, porque ditado pelas leis ou da Natureza, ou da História, transcendentes à vontade dos homens, era apenas o que era para ser. O fim justifica e exige o meio: o terror.
Tudo o que sempre esteve inscrito no coração do homem como o mal radical, isto é, agir contra seu irmão (lembre-se de Caim e Abel), por meio dos movimentos e governos totalitários desaparece. Com o extermínio admitido como gesto natural e corriqueiro, o mal deixa de ser entendido como mal. Portanto, a consciência moral submerge. A isso Hannah Arendt, pensadora contemporânea, chama de “banalização do mal”.
Os totalitarismos nos legaram a destituição do mal e da consciência moral. A intolerância ativa é sua manifestação. Assim como a desfaçatez, que tanto chama a atenção na violência cometida em nome do preconceito, na cânula da lâmpada fluorescente estilhaçando contra o jovem homossexual na Avenida Paulista.
* Dulce Critelli é doutora em Psicologia da Educação, professora do Departamento de Filosofia da PUC-SP e terapeuta existencial.
** Este artigo é parte integrante do suplemento Carta na Escola, da revista Carta Capital.
*** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.