Washington, Estados Unidos, 4/9/2014 – Uma comissão da Organização das Nações Unidas (ONU) que investiga o histórico de discriminação racial nos Estados Unidos manifestou forte preocupação diante da nova série de leis que penalizam as pessoas sem teto neste país.
A quantidade de sem teto disparou desde que começou a crise financeira em 2008 e afetou principalmente as minorias raciais. Em muitos lugares as autoridades adotaram medidas enérgicas contra atividades como dormir ou mesmo comer em público, uma vez que afetavam os serviços sociais.
A crítica é produto de uma comissão de especialistas que analisam o avanço na aplicação pelos Estados Unidos das obrigações que assumiu na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Cerd).
“O comitê está preocupado pelo elevado número de pessoas sem teto, que procedem de maneira desproporcional das minorias raciais e étnicas”, e por sua penalização “mediante leis que proíbem atividades como ociosidade, camping, mendicância e ficar deitado em espaços públicos”, diz em um informe divulgado no dia 29 de agosto.
Na história dos Estados Unidos, esta é apenas a segunda vez que os antecedentes de discriminação racial do país, em particular as ações do governo federal, são examinados formalmente frente ao direito internacional. A comissão pediu ao governo que “suprima” as leis e políticas que facilitam a penalização das pessoas sem teto e também que gere incentivos para que as autoridades apliquem estratégias políticas alternativas.
Em março o Comitê de Direitos Humanos da ONU advertira que a penalização das pessoas sem teto equivale a um tratamento “cruel, desumano e degradante”. “Estes são especialistas em direitos humanos que viram abusos em todo o mundo, mas ainda assim quando ouvem falar destes temas nos Estados Unidos ficam espantados”, disse à IPS o advogado Eric S. Tars, do Centro Nacional de Direito sobre a Pobreza e as Pessoas Sem Teto.
O comitê da Cerd pediu informação adicional ao governo norte-americano antes do próximo exame do país, em 2017. Outros assuntos destacados pela delegação da ONU são os chamados perfis raciais, prática pela qual a polícia interroga as pessoas segundo sua origem étnica, e a violência armada, dois temas que costumam receber muito mais atenção dos responsáveis públicos e dos meios de comunicação.
O exame do progresso dos Estados Unidos na aplicação da Cerd aconteceu durante dois dias em meados de agosto, com presença de aproximadamente 30 funcionários e dezenas de grupos da sociedade civil.
Para alguns observadores, o simples fato de o governo de Barack Obama comparecer perante um órgão internacional para discutir estas questões já é importante, o que ficou claro pelo tamanho considerável da delegação e a extensa resposta oficial aos questionamentos da ONU. “Em muitos aspectos, contradiz a ideia da excepcionalidade dos Estados Unidos, de que não temos violações dos direitos humanos aqui”, afirmou à IPS a diretora-executiva da Rede de Direitos Humanos dos Estados Unidos, Ejim Dike.
“Na verdade, temos muitas violações de direitos humanos, e nosso passado racial, e lamentavelmente presente racial, são indícios destas preocupações. Às vezes as manchetes recordam tanto o que aconteceu nos anos 1950 e 1960 que perguntamos o quanto progredimos”, destacou Dike. Segundo alguns indicadores, a discriminação racial é pior agora do que décadas atrás.
O resumo oficial da discussão entre os especialistas da ONU e os representantes da sociedade civil registrou o espanto de um membro do comitê “ao se dar conta de que, apesar de várias décadas de ação afirmativa nos Estados Unidos para melhorar a diversidade de cores e raças nas escolas, a segregação hoje em dia é muito pior do que era na década de 1970”.
Do mesmo modo, nos últimos anos a disparidade étnica seguiu caracterizando as pessoas sem lar neste país, algo que se reforçou em razão da crise financeira de 2007 e 2008. Por exemplo, em 2010, os afro-norte-americanos tinham sete vezes mais probabilidades do que a população branca de precisar de uma moradia de emergência, segundo dados do Instituto da Infância, da Pobreza e da Falta de Moradia, uma organização de investigação. Discrepâncias semelhantes podem ser vistas no caso dos hispanos e de outros grupos minoritários.
Isto é importante porque, ao contrário da legislação interna, a Cerd proíbe as políticas discriminatórias, independente de sua intenção ser ou não discriminar. Também é importante a forma como as autoridades respondem à falta de moradia. Embora a crise financeira nos últimos anos tenha reduzido os orçamentos estatais e provocado perda de empregos e casas, a resposta oficial foi fortalecer a repressão para que essa situação seja ainda mais difícil.
Nos três últimos anos, por exemplo, o número de cidades que proibiram dormir em veículos aumentou 119%, segundo dados publicados em julho. A proibição de dormir ou acampar em público também subiu 60% nesse período. “Estes números, em geral, estão aumentando e, em alguns casos, de maneira importante”, ressaltou o advogado Tars.
No entanto, a recessão econômica agravou a pobreza em lugares onde antes não se via estes problemas, nas comunidades suburbanas e rurais. Os serviços sociais já eram limitados nessas áreas, e os problemas da economia nacional fizeram com que as autoridades reduzissem ainda mais os orçamentos públicos.
“Primeiro as comunidades e os governos reduzem os recursos para os abrigos e as organizações afins e dizem que isso não é responsabilidade do Estado. E alguns até dificultam o trabalho das organizações beneficentes que se ocupam da questão, por exemplo, ao punir os que comem alimentos doados em público”, explicou Tars. “Na verdade, há evidência significativa de que a penalização é mais cara e menos eficaz do que proporcionar moradia de baixo custo”, destacou. Envolverde/IPS