O corpo do ex-deputado Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971, não foi encontrado até hoje. Aqui, diferentemente do Chile e da Argentina, os assassinos continuam livres e impunes.
É muito difícil escrever sobre o desaparecimento de Rubens Paiva. Como se eu fosse mais um a entrar sem pedir licença e, grosseiramente, revolver a ferida aberta há 40 anos, uma chaga que é a história de Eunice Paiva e seus filhos, e também a história do Brasil.
Há 40 anos que a privacidade da família Paiva não existe. Duas cartas vindas do Chile foram interceptadas pelo Cisa, órgão de inteligência da aeronáutica. A primeira agradecia a “Raul” por um favor e pedia qualquer miudeza em troca; e a segunda – endereçada a “José” – tratava da fuga de presos políticos e de uma proposta para criar em Santiago uma seção internacional do MR-8. Rubens Paiva, cujo codinome era “Raul”, contava apenas com 41 anos quando o Estado brasileiro o sequestrou. Diante da tosquice dos militares da época, fica difícil dizer que houve um engano, mais correto seria dizer que Paiva “deu” azar. Muito azar. O telefone de “Raul” constava numa das cartas. O ex-deputado fazia parte de uma rede de empresários, professores, profissionais liberais, cuja maioria – segundo Marcelo, filho de Rubens – não defendia a luta armada. Isso, porém, não queria dizer se omitir diante da ditadura que vigorava no Brasil. Rubens Paiva mandava relatos às agências internacionais sobre torturas e violação dos direitos humanos, escondia perseguidos, arrumava passaporte falso, resistia como podia. Deu muito azar. Se em vez do telefone dele, constasse o número de qualquer outra pessoa, digamos, de Fernando Henrique Cardoso, que na época era professor da USP, amigo de Rubens e “comunista” como ele –, se na carta interceptada constasse o telefone de FHC, hoje Rubens teria 81 anos e FHC provavelmente não seria o último tucano a voar no Brasil. Aqui e agora, fica difícil imaginar um FHC armado até os dentes e disposto a morrer pela causa vermelha. Mas em 1971, no auge do período repressivo, os milicos imaginavam comunistas infiltrados em qualquer lugar, até mesmo no Leblon e de frente para o mar. Avenida Delfim Moreira, 80, esquina com a rua Almirante Guimarães. Eis o endereço do terrorista sanguinário chamado Rubens Paiva, pai de cinco crianças, empresário bem-sucedido da construção civil. No dia do sequestro, seu plano subversivo – vejam só – era ir ao Flag (boate perto de sua casa) com a esposa e um casal de amigos.
Era dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro. Aliás, é engenhoso o paralelo que Jason Tércio, autor do extraordinário livro Segredo de Estado – O Desaparecimento de Rubens Paiva (Editora Objetiva, 336 páginas), traça entre o santo martirizado e o sumiço de Rubens Paiva. Vamos à missa portanto. Igreja dos Capuchinhos, Tijuca. Em determinado momento, o frade provoca o coronel Tigre (personagem muito bem construído) e diz: “A coragem foi uma das principais características deste santo. Ele ajudava os cristãos perseguidos e assumia a sua fé sem temer as consequências. Se fosse um cristão fraco, de fé leviana, teria fugido para bem longe, ou abjurado, e se acomodado. Ele não. Continuou a evangelizar e também a criticar Diocleciano pelas injustiças cometidas contra os cristãos”.
Basta trocar Sebastião por Rubens, cristão por democrata e Diocleciano por Médici, que o prato está servido. Se fosse o caso, o coronel Tigre torturaria o santo até ele admitir que seus companheiros de armas conspiravam contra o capitalismo e que ele, de santo, não tinha nada: era um comunista safado desde a infância em 288 d.C. e, além disso, um traidor da “revolução” e – é claro – devia saber do paradeiro de Carlos Lamarca.
Segredo de Estado é um livro de ficção e é também uma reportagem. Segundo o autor, 80% verdade, 20% inventado. O leitor sente-se eletrocutado, pendurado num pau-de-arara, doi. O brigadeiro Karlos Brenner, por exemplo, não sai da minha memória: “personagem” que carrega divisas e cadáveres sobre ombros largos. O escárnio prevalece sobre a ficção. Depois de dois dias barbaramente torturado na masmorra do Doi-Codi, Rubens Paiva morre.
O que fazer com o corpo do comunista? Talvez seja essa a parte mais asquerosa da “ficção” elaborada, curiosamente, pelo Estado brasileiro. Apesar da inverossimilhança, O Globo, JB, Tribuna da Imprensa, O Dia, chancelam a versão dos militares – segundo a qual o terror havia libertado o “subversivo” Rubens Paiva quando ele era transferido pelas “autoridades” para uma delegacia no Alto da Boa Vista. A meu ver, os que divulgaram essa mentira são tão criminosos quanto os Brenners, Tigres, Coiotes e outros personagens fictícios e não tão fictícios que se misturam a depoimentos, fatos e fotos.
Verdade que os brucutus evoluíram, embora continuem truculentos e, às vezes, tenham algumas recaídas, como no recente caso de Maria Rita Kehl – demitida por “delito de opinião”. Todavia, hoje, os Tigres e Chacais mudaram os métodos. Aprenderam a não rosnar. O que era manual de instrução de tortura virou portfólio. Só para refrescar a memória e, ao mesmo tempo, traçar um paralelo. O apresentador do programa Metrópolis, Cadão Volpato, é o mesmo que fez o release do projeto Amores Expressos para a Companhia das Letras e vendeu a ideia de que Rodrigo Teixeira era o novo Quixote da cultura brasileira. A Folha de S.Paulo não só comprou a farsa como a festejou na capa da Ilustrada. Lembram disso? Renúncia fiscal para mauricinho escrever história de amor em Paris, Roma, Nova York. Agora, vamos fazer um exercício de imaginação. Voltemos ao começo dos anos 1970, um ano depois de o Brasil ter conquistado a Copa do Mundo no México. Se Teixeira e Volpato contassem 30 e poucos anos em 1971, qual seria o “projeto expresso” deles?
Uma aproximação descabida? Então, hoje, onde estariam os Tigres, Coiotes e Hienas? Tenho um palpite. Procurem no Brasil profundo, eles adoram “mapear a periferia”, são líricos e desencanados, curtem samba de raiz e desfilam havaianas na Flip, cobram juros astronômicos, nem parecem banco, são charmosos, cinematográficos e ilustríssimos. Mas não se enganem, a finalidade dos Abutres continua a mesma: expurgar, censurar e eliminar qualquer um que se atreva a passar pelo caminho fofo e colorido deles.
Depois de 40 anos, a boa notícia é que alguns jornais e revistas faliram e outros estão com os dias contados; a má notícia é que a internet pulveriza tudo, inclusive as boas notícias. Vejam só o que, à época, o “imortal” Murilo Melo Filho, uma espécie de Cadão Volpato dos milicos, escreveu na revista Manchete: “Há quatro dias, aquela delegacia policial estava sob severa vigilância dos subversivos. Mediante infiltrações e informes seguros, sabiam eles que Rubens Paiva – um homem importante dos quadros da ALN – seria removido para outra delegacia que oferecesse maior segurança. Ele havia mandado pedir aos companheiros que o resgatassem a qualquer preço. O cerco, o bloqueio da estrada naquele ponto estratégico do Alto da Boa Vista, tudo, enfim, deu aos policiais a exata noção de um plano ardiloso, tático, inteligente e de perfeita execução”.
Àqueles que consentiram/consentem, se omitiram/omitem, calaram/calam, fingiram/fingem que estava/está tudo bem, desejo o fogo do inferno e um chá com Murilo Melo Filho na ABL. Dias depois de Rubens Paiva ter morrido sob tortura, Eunice e a filha também seriam sequestradas e torturadas. O corpo do ex-deputado não foi encontrado até hoje. Depois de oito anos, em 1979, a Lei da Anistia iria apagar da memória dos brasileiros os horrores daquela época, como se a memória também fosse um inimigo a ser exterminado. Aqui, diferentemente do Chile e da Argentina, os assassinos (de ambos os lados) continuam livres e impunes. No Brasil, o horror e o escárnio continuam sendo sinônimos de ordem e progresso.
* Marcelo Mirisola é escritor paulistano, autor de “Memórias da Sauna Finlandesa” (Editora 34), entre outros.
** Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil.