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Orfanatos mexicanos são buracos negros para a infância

Algumas das crianças acolhidas na Villa Infantil Irapuato, com altos padrões de atenção e cuidado. Mas muitas outras em albergues no México vivem indefesas. Foto: Cortesia de Laura Martínez
Algumas das crianças acolhidas na Villa Infantil Irapuato, com altos padrões de atenção e cuidado. Mas muitas outras em albergues no México vivem indefesas. Foto: Cortesia de Laura Martínez

 

Cidade do México, México, 19/8/2014 – Os abrigos que acolhem meninos e meninas órfãos ou em situação vulnerável no México carecem da necessária regulamentação e supervisão do Estado, o que propicia a ocorrência de violações escandalosas dos direitos humanos nesses locais. “A situação é grave. Não se pensa no interesse superior da criança. Seus direitos são violados”, afirmou Laura Martínez, diretora do não governamental Patronato Pró-Lar da Criança de Irapuato, na cidade de mesmo nome no Estado de Guanajuato, 300 quilômetros ao norte da Cidade do México.

“Não há um censo nacional, onde estão, quem os atende, sob qual metodologia. Teríamos que estar bem regulamentados, bem supervisionados. As regulamentações não são cumpridas e não existe legislação a respeito”, denunciou Laura à IPS. Seu albergue, conhecido popularmente como Villa Infantil Irapuato, funciona desde 1969 e tem capacidade para atender 40 meninas e meninos órfãos ou em situação de risco entre seis e 20 anos.

Desde 2003, a instituição tem seu próprio protocolo de atenção. Os acolhidos são enviados pelo escritório estadual do Sistema Nacional para o Desenvolvimento Integral da Família ((DIF) e recebe financiamento público e privado. O albergue funciona em um contexto de falta de registro e legislação, normas descumpridas, supervisão inexistente, carência de profissionalização e de recursos financeiros, em uma situação que especialistas consideram que viola tratados internacionais assinados pelo Estado mexicano.

Neste país de 118 milhões de pessoas, sendo cerca de 45 milhões menores de 18 anos, existem aproximadamente 700 centros de acolhida públicos e privados, com um total de 30 mil crianças. Mas a Rede Latino-Americana de Acolhimento Familiar indica que cerca de 400 mil menores mexicanos carecem de tutela parental e destes cem mil sobrevivem nas ruas.

O último escândalo no manejo dessas instituições estourou em 15 de julho, quando a Procuradoria Geral anunciou o resgate de 596 pessoas, entre elas 492 crianças, do albergue La Gran Famila, na cidade de Zamora, no Estado de Michoacán. Eram vítimas de maus-tratos e sobreviviam em condições paupérrimas.

O abrigo foi fundado em 1967 e era dirigido por Rosa Del Carmen Verduzco, conhecida como “Mamá Rosa” (Mamãe Rosa), que foi considerada “inimputável” por questões de idade e saúde, enquanto são processados penalmente seis de seus colaboradores por sequestro, maus-tratos infantis e abusos sexuais. No dia 30 de julho, foi fechado definitivamente.

“O Estado tem atraso de 30 anos na garantia dos direitos da infância em políticas públicas. Nunca supervisionou esses estabelecimentos, estando mais para assuntos conjunturais nos quais se acorda e se volta o olhar para eles”, denunciou Martín Pérez, diretor-executivo da mexicana Rede pelos Direitos da Infância. Como o Estado não dá dinheiro, tampouco supervisiona. “E isso deixa as crianças indefesas. Os albergues se convertem em uma caixa negra, nunca se sabe o método educacional, as contribuições ou os danos”, acrescentou à IPS.

Embora sem as dimensões do caso “Mamá Rosa”, as irregularidades nos abrigos que ganham dimensões de notícia não são exceção. Em 17 de junho, as autoridades resgataram 33 crianças entre cinco e 17 anos e mais dez jovens entre 18 e 24 anos da Casa Lar Domingo Savio, na cidade de Puebla, diante de indícios de serem vítimas de abusos por parte de seu diretor.

Em 2011, 19 crianças foram libertadas do Instituto Casa Lar Nosso Senhor da Misericórdia e Nossa Senhora de La Salette, na Cidade do México, que sofriam ultrajes e ameaças de morte para que não denunciassem as condições em que viviam. Dois anos antes, as autoridades resgataram 126 menores maltratados nos abrigos Casitas del Sul, administrados pela não governamental Reintegração Social. Além disso, foram detectados o desaparecimento de 15 delas, das quais três continuam sem serem encontradas.

A Lei de Assistência Social obriga o Ministério da Saúde a monitorar os centros de acolhida, mas essa supervisão é praticamente inexistente. Há mais de uma década o México está na mira de instâncias internacionais por essas práticas. Em suas recomendações de 2006 ao Estado mexicano, o Comitê dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU), expressou sua preocupação pelo alto número de crianças enviadas a instituições privadas sem que se tenha controle delas, por isso recomendou a criação de um diretório e uma base de dados dos menores nessa situação

“Preocupa o Comitê a falta de informação sobre as crianças que foram separadas dos pais e vivem em instituições. Este organismo toma nota do grande número de crianças que vivem em instituições administradas pelo setor privado e lamenta a falta de informação e supervisão dessas instituições por parte do Estado”, diz o documento.

Por isso, o Comitê que vigia o cumprimento pelos países da Convenção sobre os Direitos da Criança recomendou que o Estado estabeleça regulamentos baseados nesses direitos, promulgue leis eficazes, fortaleça estruturas como a família estendida, capacite melhor o pessoal e destine mais recursos aos órgãos pertinentes.

No informe Direito da Criança de Viver em Família. Cuidado Alternativo. Pondo Fim à Institucionalização nas Américas, divulgado em outubro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pediu urgência aos Estados na adoção de regulamentações sobre a autorização e habilitação das instituições de acolhida, os padrões de prestação de serviço, os mecanismos de supervisão e controle e sanções adequadas.

“A institucionalização expõe as crianças a maiores riscos de sofrer diversas formas de violência, abuso, negligência e inclusive exploração, em comparação com as crianças que estão em outras modalidades de cuidado alternativo”, concluiu a CIDH, que faz parte do sistema da Organização de Estados Americanos. A sociedade civil mexicana propõe uma ofensiva para que o Estado cumpra as obrigações assumidas.

Durante o 69° período prévio de sessões do grupo de trabalho, que acontecerá de 22 a 26 de setembro, uma delegação de crianças, junto com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e organizações não governamentais, vai apresentar em Genebra um informe sobre a situação da infância, que inclui os menores sem cuidados parentais.

Entre maio e junho de 2015, o Comitê dos Direitos da Criança, composto por 18 especialistas independentes, avaliará o México. Além disso, a relatora sobre os Direitos da Infância da CIDH, a paraguaia Rosa María Ortiz, visitará o México em outubro para elaborar um relatório sobre a situação no país.

“Destacamos a necessidade de evitar a institucionalização, ter uma lei geral de cuidados alternativos e que também é urgente contar com informação clara e detalhada sobre as crianças nas instituições”, ressaltou Pérez. Para Laura Martínez, é muito importante revisar o modelo de atenção de cada uma das organizações. “Tudo cai em um modelo assistencialista. E quem pode garantir o acompanhamento dos casos? O caminho é outro, o de trabalhar para que a criança se desenvolva”, enfatizou. Envolverde/IPS