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Os boicotes crescem como poder silencioso e sem violência

Manifestação pacífica diante da embaixada dos Estados Unidos no Chile pedindo a retirada das forças norte-americanas em territórios ocupados. Foto: Rafael Edwards/Ressenza via Flickr/CC 2.0
Manifestação pacífica diante da embaixada dos Estados Unidos no Chile pedindo a retirada das forças norte-americanas em territórios ocupados. Foto: Rafael Edwards/Ressenza via Flickr/CC 2.0

 

Cidade do Cabo, África do Sul, 10/7/2014 – Pacifistas de 40 países se reuniram nesta cidade sul-africana para analisar estratégias contra a guerra, com o mundo gastando US$ 1,76 trilhão nas atividades militares em 2013, segundo o Instituto Internacional de Estocolmo para a Pesquisa da Paz (Sipri). Cerca de 120 ativistas se reuniram entre os dias 4 e 8 deste mês na Câmara Municipal de Cidade do Cabo, para a reunião quadrienal da Internacional de Resistentes à Guerra (IRG), uma rede mundial criada em 1921.

Segundo o Sipri, em 2012 as vendas das cem principais empresas de armamentos atingiram US$ 410 bilhões. Calcula-se que por dia morrem mil pessoas devido à causa da violência armada. A IRG divulgou, no dia 6, na Cidade do Cabo, seu segundo Manual para Campanhas Não Violentas, que documenta 14 casos de resistência não violenta e oferece um panorama rápido da proliferação dos movimentos pacifistas no mundo, incluídos os protestos contra os militares indonésios em Papua Ocidental e o movimento de solidariedade com a diáspora da Eritréia.

O documento também contém conselhos práticos, que podem ser úteis tanto para ativistas da Colômbia como da Coreia do Sul, e reconhece o fio condutor entre o compromisso moral da não violência adotada por Mahatma Gandhi, o pai da independência da Índia, com a decisão estratégica pela via pacífica na Europa oriental nos anos 1980, e a “vontade de utilizar métodos não violentos… mas sem o compromisso de evitar a violência física de baixo nível”.

Do mesmo palanque de onde liderou a histórica Marcha pela Paz da África do Sul em 1989, o arcebispo Desmond Tutu se dirigiu aos participantes do fórum no dia 5, e recordou a longa e sangrenta luta contra o apartheid neste país. “Enviem nossas saudações aos seus países”, disse o prêmio Nobel da Paz 1984 ao público presente. “Inclusive os mais pobres estiveram dispostos a receber os exilados e refugiados sul-africanos”, recordou.

Tutu defendeu maior colaboração entre os diferentes movimentos pela paz, para encontrar força na unidade, com base no tema da conferência: Pequenas Ações, Grandes Movimentos: a Comunidade da Não Violência. Nesse sentido, durante o encontro se reuniu pela primeira vez a Rede Pan-Africana de Não Violência e Pacificação, primeira iniciativa regional de seu tipo dedicada a conectar as organizações de base em torno da resistência pacífica.

“Estou encantada por esta rede nascer na Cidade do Cabo. Na última contagem estavam representados 33 países africanos, com um comitê diretor de 16 membros, cada um de um país diferente”, afirmou Nozizwe Madlala Routledge, diretora da organização sul-africana Embrace Dignity, que luta contra a exploração comercial das mulheres.

A rede pode ser muito importante na luta contra o aumento da presença militar dos Estados Unidos na África como, por exemplo, o plano de Washington para construir um complexo de operações especiais no valor de US$ 220 milhões em sua base de Camp Lemonnier, no Djibuti, afirmaram especialistas presentes ao fórum da IRG. “O Comando dos Estados Unidos na África foi ampliado para cerca de dois mil soldados no continente, incluindo 38 países”, detalhou o coordenador da conferência, Matt Meyer.

“Quase sem dinheiro, mas com muito ardor e compreensão da necessidade da unidade diante do militarismo, da violência e da recolonização da terra, reunimos pessoas de todos os continentes e 33 de países africanos para dizer: “Vamos continuar resistindo. Vamos construir um novo e belo amanhã”, ressaltou Meyer à IPS.

A eficácia do movimento pela paz não costuma aparecer nas manchetes da imprensa, mas está documentada. Após analisar dados estatísticos entre 1900 e 2006, a Fundação pela Paz Mundial concluiu que os movimentos não violentos tiveram 53% de êxito, contra 22% dos movimentos violentos. Entre os êxitos estão as vitórias obtidas pelo movimento palestino de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), segundo Omar Barghouti, membro do comitê fundador da Campanha Palestina pelo Boicote Acadêmico e Cultural a Israel.

O BDS pretende que Israel se retire dos territórios ocupados para as fronteiras anteriores a 1967, o fim do sistema de discriminação legal contra a população palestina e o direito dos refugiados ao retorno. Para isso, busca a mesma solidariedade mundial que se focou na luta contra o apartheid na África do Sul e exorta o setor privado a retirar seus investimentos das empresas que se beneficiam diretamente da ocupação da Palestina.

Nos três últimos anos, muitos importantes fundos de pensões europeus retiraram seus investimentos em bancos israelenses, incluindo o PGGM, o maior de seu tipo na Holanda. Outros que seguiram o exemplo de desinvestimento foram Bill Gates, fundador da Microsoft e um dos homens mais ricos do mundo, e as igrejas Metodista Unida e Presbiteriana dos Estados Unidos, informou Barghouti. Com orçamento de defesa de US$ 15 bilhões por ano, o governo israelense não leva isto à sério e identificou o movimento BDS como uma ameaça estratégica, acrescentou.

Os regimes autoritários de outras partes também reconhecem o poder legítimo da resistência pacífica. Uma ativista do Sudão do Sul, que só se identificou como Karbash AM, disse à IPS que o governo sudanês proibiu as organizações não governamentais de capacitarem os refugiados na não violência. Milhares de pessoas perderam a vida no conflito armado na região após a independência do Sudão do Sul em 2011.

Gênero e militarismo

As mulheres, as meninas e os meninos são os mais prejudicados pelos conflitos armados e pela militarização. O Programa de Mulheres pela Pacificação (WPP) divulgou seu informe anual no dia 24 de maio na Cidade do Cabo, alguns dias antes da reunião da IRG. A tarefa da organização, integrada por 50 entidades em todo o mundo, gira em torno do que Sophie Schellens, do WPP, chama de “não violência ativa e sensível ao gênero”. “Este é um tema politicamente sensível, já que questionamos os militares sob a perspectiva de gênero”, pontuou.

Por exemplo, acrescentou Schellens, no informe da WPP, “uma ativista indígena de Manipur (Índia), Sumshot Khular, conecta os vínculos entre o militarismo, o desenvolvimento e a política, e as consequências específicas desta aliança sobre as mulheres”. O artigo de Khular, Gênero e Militarismo: a Análise dos Vínculos para Elaborar Estratégias para a Paz, diz que no sul da Ásia vivem mais de 160 milhões de indígenas, mas poucos governos reconhecem seus direitos.

Assim, muitos ficam à mercê de empresas que extraem carvão, urânio, petróleo e gás. “Os modelos de desenvolvimento agressivos e associados com a militarização intensiva arrasam não só nossa terra e nossos recursos, como também nossa gente, especialmente as mulheres e as meninas”, destaca Khular em seu artigo. Envolverde/IPS