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Os cinco grandes sufocam questionamento ao veto na ONU

As potências com poder de veto no Conselho de Segurança fizeram desaparecer uma resolução para limitar o mau uso dessa faculdade. Foto: UN Photo/Paulo Filgueiras

Nações Unidas, 29/5/2012 – Quando a Guerra Fria estava em seu apogeu, um embaixador peruano, Víctor Andrés Belaúnde, expressou ceticismo com relação à capacidade dos países pequenos de sobreviver ao poderio diplomático das grandes potências na Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU é uma instituição “onde sempre há algo que desaparece”, diz uma frase atribuída a Belaúnde (1993-1966) na década de 1960. “Quando dois países pequenos têm uma disputa, a disputa desaparece. E quando uma grande potência e uma menor estão em conflito, a potência menor é que desaparece”, observava o diplomata.

Isto é, supostamente, o que aconteceu este mês quando cinco dos menores Estados-membros das Nações Unidas, que se fazem chamar “os cinco pequenos”, desafiaram outras cinco potências com cadeira permanente no Conselho de Segurança (Estados Unidos, China, França, Grã-Bretanha e Rússia) sobre o mau uso que fazem de seu poder de veto. Horas antes do debate e da votação de uma resolução proposta pelos cinco pequenos à Assembleia Geral de 193 membros, esse texto desapareceu sem nenhuma cerimônia do sagrado recinto da ONU, e provavelmente da face da Terra.

Belaúnde, que presidiu a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, foi, inclusive, mais longe ao afirmar que, “quando duas grandes potências têm uma disputa, o que desaparece é a ONU”, segundo consta do livro Crosscurrents at Turtle Bay (Contracorrentes em Turtle Bay), publicado em 1970 pela jornalista do The New York Times, Kathleen Teltsch. Felizmente, desta vez as Nações Unidas e os cinco pequenos (Costa Rica, Jordânia, Liechtenstein, Cingapura e Suíça) não desapareceram e vivem para contar o ocorrido.

A abortada resolução, formulada no delicado jargão diplomático, “recomendava” aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança considerarem “a contenção no uso do veto diante de ações concebidas para evitar ou pôr fim a genocídios, crimes de guerra e contra a humanidade”. Porém, desde o começo, os cinco grandes deixaram claro que a Assembleia Geral não tinha motivo para fazer tais recomendações ao Conselho.

William Pace, diretor-executivo do Movimento Federalista Mundial – Instituto para a Política Global, disse à IPS que, apesar de os cinco pequenos se virem obrigados a retirar essa histórica proposta, as organizações não governamentais esperam que isto seja apenas o primeiro passo, depois de 67 anos, de um trabalho comum da Assembleia e do Conselho para responder à enorme necessidade de se melhorar a capacidade de manter a paz e a segurança.

“É preciso mudar os fundamentos disfuncionais de um Conselho de Segurança dos tempos da Guerra Fria”, opinou Pace. “E um começo indispensável seria esse organismo aceitar uma provisão de não uso do veto para bloquear ações sobre grandes crimes”. A oposição a semelhante recomendação foi “um escândalo”, acrescentou.

Para Stephen Zunes, professor de estudos políticos e internacionais na Universidade de São Francisco, a retirada da Resolução mostra que os cinco grandes continuam mandando na ONU. “No entanto, são questionados cada vez mais, sua credibilidade enfraquece e seu fracasso ético é cada vez mais evidente para uma crescente maioria da comunidade internacional”, destacou.

A importância da resolução estava no fato de não só desafiar o veto chinês e russo às medidas contra o regime sírio, que reprime de forma sangrenta a oposição, e o da China diante do genocídio no Sudão, como também dos Estados Unidos quanto aos crimes de guerra cometidos por Israel, relatou Zunes, especialista em Conselho de Segurança. “Ao impulsionar essa resolução, esses pequenos países destacaram que as violações ao direito internacional humanitário são imperdoáveis, sem importar que tipo de relação tenham os cinco grandes com o governo acusado”, explicou Zunes.

Para Zunes, a proposta foi especialmente oportuna, não apenas pela situação na Síria, mas pela quase unânime votação na câmara baixa do Congresso norte-americano que, no começo deste mês, estabeleceu como política oficial de Washington o veto sistemático a qualquer resolução do Conselho de Segurança que critique Israel.

Um diplomata do Sul em desenvolvimento, que pediu reserva de seu nome, contou à IPS que os cinco retiraram a proposta no dia 23, mesmo dia em que estava prevista sua discussão, após intensa pressão exercida pelos cinco grandes, tanto na sede nova-iorquina da ONU, quanto em cada uma das capitais. O Escritório de Assuntos Legais, prosseguiu o diplomata, também embaralhou o meio de campo ao afirmar que a resolução exigia um apoio de dois terços da Assembleia Geral, pois implicava uma reforma do Conselho de Segurança.

“Provavelmente, o Escritório estava agradando aos cinco grandes, e chama a atenção o fato de a China ter feito circular o texto do Escritório entre todos os Estados-membros mesmo antes de sua publicação, indicando que os cinco membros permanentes o receberam antecipadamente”, relatou a fonte. “Isto frustra todo o impulso para reformar o Conselho e também prejudica sua efetividade”, lamentou. Ao bloquearem a menor reforma, os cinco grandes podem ter ganho momentaneamente uma batalha, mas, no longo prazo, causam um enorme dano à credibilidade do Conselho. “Pode haver mais e mais países que o evitem ou se neguem a cumprir suas decisões”, alertou o diplomata.

Além da oposição das potências, os cinco pequenos não conseguiram convencer uma quantidade suficiente de governos sobre a conveniência de separar a ampliação do Conselho de Segurança, que exige reformas na Carta da ONU, da modificação de métodos de trabalho e procedimentos do órgão. Isto está limitado por uma resolução que a Assembleia Geral adotou em 1993 e que exige maioria de dois terços de seus membros, ou 129 países.

“Um objetivo fundamental é separar as reformas, que não exigirem mexer na Carta, das restrições de 1993. E isto se consegue com uma decisão da Assembleia Geral por maioria simples”, explicou Pace. Embora a ampliação do Conselho, para dar lugar a mais membros permanentes, seja muito importante, pode demorar anos ou mesmo décadas, enquanto as outras reformas nesse órgão devem ser adotadas de imediato, tanto pela Assembleia Geral quanto pelo próprio Conselho de Segurança, ressaltou.

Os cinco pequenos, segundo esse especialista, não colocaram em questão a legitimidade do veto, mas seu uso indevido, causador de milhões e milhões de mortes. Ao criticar o silêncio sobre esta notícia na maioria dos grandes meios de comunicação, Pace destacou que “o fato de a IPS e apenas mais um punhado de órgãos da mídia em todo o mundo cobrirem a resolução dos cinco pequenos constitui um sinal aterrador do estado em que se encontra o jornalismo internacional”. Envolverde/IPS